Da lousa ao tablet…

Quando entrei na primária, já usufrui de uma escola construída pelo Estado Novo ao abrigo do Plano dos Centenários, para comemorar o terceiro centenário da Restauração da Independência e o oitavo da Independência de Portugal, respetivamente em 1940 e 1943, Plano que foi delineado para “dar escola a todas as crianças do país”. Com arquitetura típica, aquilo a que chamaram o estilo “Português Suave”, eram de construção sólida, excelente para a época (até já tinham “retretes” turcas, daquelas em que fazemos o “serviço” agachados, coisa que não existia na maioria das casas da aldeia), ao ponto de ainda hoje resistirem a todo o tipo de “intempéries”, apesar de muitas delas terem sido transformadas em museus, restaurantes, igrejas, residências e sei lá bem que mais. Da minha escola tenho gratas recordações e nelas estão incluídas as professoras (nunca tive um professor), os colegas, as brincadeiras e tudo o que a ela dizia respeito.

Julgo que a minha mãe só foi comigo à escola quando entrei para a primeira classe e, a partir daí, não me lembro de algum dia me ter ido levar ou buscar, o que também aconteceu com todos os outros. Mas soube castigar-me quando um dia faltei às aulas para ir com o Domingos colher os dióspiros que o pai comprara no Souto, retendo-me na varanda de casa durante uma tarde, uma eternidade para quem estava habituado a ser livre como os pássaros. Íamos a pé, fizesse chuva ou queimasse o sol, a maioria descalços porque não tinham qualquer tipo de calçado, tantas vezes quebrando a geada sob os pés, de sacola de pano feita em casa, a tiracolo, onde levava a lousa, os lápis de ardósia e os livros.

A escola até já tinha carteiras de tampo inclinado com buraco para o tinteiro, quase sempre cheio com tinta Pelikan azul, usada para molhar a pena quando fazia as redações e os ditados, com a qual eu tinha uma relação pouco amistosa, refletida nos frequentes borrões de tinta, só atenuados com o “papel mata borrão”.

A lousa, um retângulo de ardósia com um caixilho de madeira, era o nosso “caderno” de rascunho para fazermos contas, escrevermos repetidamente algumas palavras difíceis e fazer muitos outros trabalhos, com a vantagem de ser facilmente “limpa” para novo uso: Uma cuspidela (que na gíria chamávamos “bisga”) no meio da lousa e com a manga completava-se o trabalho de limpeza, ficando pronta para ser reutilizada.

Quase todos as professoras tinham “ao seu serviço” dois instrumentos para nos disciplinar, por errar as contas no quadro, por erros no ditado ou qualquer outro motivo que entendessem merecedor de sanção disciplinar: A cana e a palmatória. Lembro-me de uma cana muito comprida que não nos deixava qualquer zona de segurança, pois permitia à professora estar sentada na cadeira e chegar com ela às nossas orelhas se fosse caso disso. A palmatória de uma das minhas professoras – e não vou referir o seu nome pelo muito respeito que tenho à sua memória e por tudo aquilo que lhe devo, que é muitíssimo – era de madeira “grossa”, com três a quatro centímetros de espessura, de “pá” redonda com cinco buracos. Quando estava zangada e tinha de a usar, segurava com a mão esquerda a ponta dos dedos do “desgraçado” para que não escapasse e, com a outra, agarrava-a firmemente pelo cabo levantando-a acima da cabeça para ganhar mais lanço e “disparar” sobre a palma da mão da vítima. E nunca era um “bolo” só…

Tudo isso já lá vai, a escola mudou de instalações, de métodos de ensino e de programas. Democratizou-se, muitas vezes para além do razoável com inversão de protagonismos, pois quem passou a levar “bolos” com “outras palmatórias” foram os professores, não só dos pais como dos próprios alunos. Há ganhos, muitos ganhos, como nunca imaginei enquanto andava por lá. Mas também houve perdas neste processo, muitas delas como consequência das lutas partidárias que nem sempre colocaram a educação acima dos interesses de partidos ou grupos. Uma coisa me parece certa: Apesar de todos os meios de que a escola de hoje dispõe, incomparavelmente superiores em todos os níveis aos existentes naquela altura, continuo a pensar que, com a quarta classe de então, sabíamos mais do que com o quarto ano de hoje, senão mesmo com o sexto ano. E a nível de português, de não dar erros, nem se fala…

Recordei este meu tempo ao ler a notícia de estar em funcionamento uma escola piloto, em pleno Alentejo, mais concretamente em Cuba. A experiência em curso tem como objetivo a eliminação do uso de papel na escola. Todos os alunos receberam um “tablet” que contem os livros, testes, exercícios e todo o material de consulta e estudo, sendo o primeiro ano de adaptação e o segundo de exploração, em que já funcionam unicamente com aquele equipamento, numa experiência que preanuncia as escolas deste século. Será o futuro? É provável que sim, embora já não o seja o meu pois não dispenso o papel na maior parte dos casos. Nem mesmo os simples “auxiliares de memória”, isto é, as pequenas listas de afazeres para o dia… Mas esperemos que seja mais do que um meio tecnológico a juntar a todos os outros “brinquedos” de que as crianças hoje dispõem e sirva para as fazer pensar e não para lhes aumentar a preguiça mental…

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