Os segredos escondidos nas gavetas

A gaveta tradicional, de madeira ou chapa, tem um simbolismo rico e variado, que utilizamos nas mais diversas expressões do dia a dia.

“Os da Fuseta, comem na gaveta” era uma expressão algarvia para criticar a “forretice” dos habitantes daquela localidade, frase essa que assentava na ideia de que os habitantes da Fuseta colocavam o prato na gaveta enquanto comiam. Se durante a refeição alguém batesse à porta, fechavam-na imediatamente e iam atender com a desculpa: “Eu convidava-o para jantar, mas já acabei”…

Na memória de miúdo vejo-me a tentar abrir umas grandes gavetas de madeira, sempre muito “perras” e “desconchavadas” porque se prendiam de um ou outro lado, sobretudo no inverno quando a madeira inchava com a humidade. Às vezes puxava, puxava e só vinha o… puxador. Em contrapartida, embora mantendo o essencial, hoje as gavetas têm calhas metálicas e deslizam suavemente, sendo o melhor exemplo as de cozinha que até têm amortecedor, pelo que se lhes dá um toque com a perna ou com a anca para fecharem e lá vão elas, docemente e sem ruído. Até dá gosto.

Nos gavetões (e nas arcas) guardavam-se as colchas de linho trabalhadas à mão, que passavam de mães para filhas, de filhas para netas e assim sucessivamente, como um tesouro hereditário, mas quando colocadas na cama pesavam tanto que se tornava difícil “dar uma cambalhota” entre os lençóis. Com a chegada das colchas de algodão e de seda passaram só a ser usadas na passagem das procissões, penduradas nas janelas e varandas, agora joias perdidas dum tempo distante.

Na gaveta (e no colchão) entre a roupa, guardava-se o dinheiro das economias de uma vida. Hoje já não há dinheiro para guardar e as gavetas também já não são usadas para tal pois os (poucos) que o têm, vão ao banco… levantá-lo, para o enterrarem no quintal metido numa lata… por segurança. É que as gavetas dos bancos já não são o que eram…

“Engavetados” estão alguns milhares de portugueses, muitos deles por serem apanhados a… “meter a mão na gaveta”, se bem que a grande maioria dos que fazem tal habilidade continua cá fora. Até estrangeiros lá estão, por se distraírem a apanhar sol ou a comer marisco cá para estas bandas sem terem meios para tal e, lá está, também meteram a mão na dita cuja.

Também “engavetado” foi Isaltino Morais, um político que até já foi ministro, por “branquear capitais” (pensava que só se branqueava a roupa) e outras habilidades que lhe permitiram ter uma conta choruda lá fora. Depois de um longo processo que andou anos e anos de gaveta em gaveta (nunca mais saía da gaveta) dizem que, para servir de exemplo, começaram por o mandar “engavetar” dez anos (para envelhecer como o vinho do Porto?). Mas o homem “tirou da gaveta” umas dúzias de recursos, uns atrás dos outros, e até parecia que nunca mais ia “engavetado”, conseguindo reduzir o tempo de “envelhecimento” para dois anos, que pode vir a encolher com a “lavagem”. O resto das “férias”, deverá gozá-las em casa, entre jantaradas e charutos, com a tal “massa” numa “gaveta” na Suíça.

Mas, dizem para aí as más línguas que, se a justiça funcionasse e passasse os políticos a “pente fino”, iriam “engavetados” um sim um não, se fosse a descer porque, se fosse a subir, era tudo a eito (escapavam os dedos de uma mão).

Noutros tempos, na gaveta da mesinha de cabeceira, por debaixo dos lenços e meias rotas, guardava-se a fisga e as cartas de amor atadas com um cordel, para ler à luz da vela na “calada da noite”, entre lágrimas de saudade. Agora, nessas mesmas gavetas, há jogos de computador, telemóveis e consolas, misturados com preservativos e pílulas para o efeito. As gavetas são as mesmas, só mudou o recheio…

Nos escritórios, as fichas e contas correntes dos clientes saíram das gavetas reais para “gavetas virtuais” no computador, diminuindo o papel e… os empregos.

A gaveta tem servido para guardar (e esconder) muitas coisas, até ideais e ideologias. Alguns dos nossos políticos até já conseguiram “meter o socialismo na gaveta”… para poderem “pescar” votantes noutras águas que não as suas (mais ou menos o que os homens casados fazem quanto deixam a aliança na gaveta ou no bolso, para tentar arranjar outro “cabide onde pendurar as calças”). Melhor que isso, talvez até extraordinário, foi o que F. Hollande fez em França, ao conseguir as duas coisas ao mesmo tempo – em relação ao socialismo, para “ver se segura o poder” e em relação à aliança, para “ver se segura os apetites”. Alguns curiosos das coisas dos espíritos dizem que, às tantas da noite, é costume ouvir-se uma voz, como que vinda de lá do fundo: “Sou o socialismo amordaçado. Deixem-me sair da gaveta…”

A mais recente funcionalidade dessa caixa está nalguns hospitais alemães (e já de outros países): Têm uma “gaveta” para as mães que querem abandonar os bebés poderem, anonimamente, aí depositá-los entre cobertores e almofadas, uma ideia louvável para substituir a “roda dos expostos” em S. Paulo e os caixotes do lixo ou os tubos de esgoto por esse mundo fora.

E, no fundo da gaveta, há projetos e processos que de lá não saem (uns por falta de coragem e outros por malandragem), promessas não cumpridas dos políticos, ideias e sonhos não apresentados por medo ou vergonha, antigas lembranças e velhas recordações, coleções começadas, a moeda da sorte, um rapa, um peão, berlindes, o primeiro canivete, um caderno de poemas com um trevo seco entre as páginas, às vezes até um “fundo falso”.

Bem no fundo da gaveta é possível encontrar de tudo, até mesmo um sonho esquecido por uma criança, quando saiu para crescer e ser adulto…

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