Se eu acreditasse na reincarnação, sei com toda a certeza o que queria ser quando fosse reincarnado: “Burro”, isto é, homem burro. É que os “burros” são felizes, mais felizes, vivem “na boa” pois não questionam, não têm grandes sonhos e acreditam nas mentiras que lhes impingem, com fé de idiotas. E por isso, são felizes.
Não há “porquês”, nem interrogações, nem “queimar os fusíveis” a pensar. O cérebro é para estar desligado.
Basta um líder pregar “uma verdade”, a “sua verdade”, por mais demagógica que seja, ainda que estúpida de todo, e assumem-na como sua e aí encontram um caminho, um rumo, por onde seguem na manada de “burros”, a caminhar pelo mundo, felizes com a sua verdade que não questionam, felizes na sua burrice. Que melhor sorte posso querer?
Cada vez mais penso que ser “burro” é ser feliz porque pensar dá trabalho, questionar dá chatices, duvidar dá interrogações. Bom mesmo é acreditar, acreditar, numa sabedoria simples, sem complicação nem dores de cabeça pois não é preciso “puxar pela mona” nem “gastar a massa cinzenta”.
Não, não quero ser o burro animal, esse desgraçado que foi explorado pelo homem durante séculos desde que foi domesticado, obrigado a trabalhos forçados à volta de uma nora a tirar água, em diversos lides agrícolas ou no transporte de pessoas e bens, especialmente em terrenos de difícil acesso, acabando velho, cansado e escanzelado, de tanto ser explorado. E, com o avanço da tecnologia, especialmente dos veículos motorizados, acabou por ser votado ao abandono, o que o coloca entre as espécies em via de extinção. Mais ainda, sem o merecer, fizeram dele o símbolo da ignorância, da estupidez e da teimosia, provavelmente por ter sido sempre o “burro de carga”.
Mas eu, como “burro”, serei um indivíduo de raciocínio enviesado embora, ao mesmo tempo, seguindo em linha reta para não alterar o rumo quando enveredar pela burrice. Mas não pensem que me sentirei intimidado. Pelo contrário, achar-me-ei brilhante, muito brilhante, e terei muito orgulho em mim.
Como entre nós é vulgar premiar e darem-se posições de relevo exatamente por se ser “burro”, espero vir a tornar-me famoso
como muitos outros já o são, pela burrice. E como bom “burro” que serei, achar-me-ei inteligente, excepcional, e pensarei sempre que a sociedade não estará a ser justa comigo. Mas, mesmo assim, seguirei sempre em frente sem me preocupar com as minhas limitações, à espera que um dia me reconheçam o génio. Ainda que para isso tenha de montar em cima de um burro até porque, “um homem em cima de um burro é… um burro de dois andares”.
Claro que terei uma grande capacidade de debate de ideias, apesar de ninguém concordar comigo (a não ser os outros “burros”). E até serei violento e lutarei com os que discordarem de mim, porque eu terei sempre razão. Essa qualidade deve-se ao facto de ser “burro como um calhau”, onde as ideias batem mas não penetram.
Certo é que nunca me irei regenerar nem corrigir pois, “quem nasce burro, morre burro e não vira cavalo”.
A burrice exige perseverança e insistência até porque, se não se sabe fazer outra coisa a não ser “burro”, o que é que se pode fazer?
Este mundo é feito de “burros” e inteligentes. Podia pensar-se que o “burro” não é feliz mas não é verdade. Como passa a vida inteira sem se dar ao trabalho de pensar, não se desgasta nem se cansa como aqueles que o fazem, o que é uma grande vantagem já que, quem não pensa não sofre.
Há quem defenda a teoria da burrice generalizada entre nós, homens, ao afirmar que “o homem nasce, cresce, fica burro e… casa”. E vá lá saber-se porquê…
Não é que me importe muito mas, cá por dentro, ficarei a remoer quando me chamarem “burro”. Vai dar-me vontade de lhes “assestar” um daqueles coices…
Talvez não consiga ser um “burro” igual àquele ladrão americano que assaltou uma oficina de automóveis e, depois de separar tudo o que queria levar, encontrou carne num frigorífico e carvão ali perto. Achou então que seria uma excelente ideia fazer um churrasco. E fez… até chegar a polícia. Ou como a senhora, também americana, que foi reivindicar o Código de Defesa do Consumidor para a esquadra da polícia, queixando-se de um traficante lhe ter vendido “crack” ruim. As autoridades fizeram a análise e esta confirmou que o produto era de facto droga pelo que, ela… “foi dentro”. Atenção, não quero com isto dizer que os americanos são “burros”. Mas que também há lá muitos, há…
Toda esta minha disposição fica pendente até vir a acreditar na reincarnação. Então, sim, terei de arranjar alguém que, “quando partir desta para melhor” (lá está a burrice a funcionar pois, haverá alguém inteligente capaz de dizer que ficar metido num buraco, sozinho, com dois metros de terra em cima e sem respirar, é “passar para melhor?”…), ao chegar lá e encontrar o chefe do Departamento da Reincarnação, reserve logo a minha viagem de regresso como “burro”, o que me poupará tempo e desperdício de burrice.
Não sei distinguir a “cor de burro quando foge” e fica-me a dúvida se chegarei lá ou não pois, “burro velho não toma andadura” e por mais que “zurre”, “vozes de burro não chegam ao céu”…
Pensando bem e mesmo antes de reincarnar, como já percorri tanto caminho… já estou “burro” suficiente para fazer as figuras de “burro” que fiz (e que ainda farei, com certeza). Para treinar, já fui à feira de S. Martinho escolher a “albarda”, já tenho dado alguns “coices” e ando a ver programas de televisão muito estúpidos. Não, ainda não relincho, mas não se pode aprender tudo num dia… É preciso tempo e, com tempo, lá chegarei. Sim, porque preciso de tempo… até para vir a ser “burro”…