Um dia regressei da escola com uma dor na zona abdominal, mais ou menos na “boca do estômago”. A minha avó que estava por perto disse logo: “Deves ter a espinhela caída”. E vai daí, mandou-me sentar num banquinho com as pernas esticadas. Colocou-se por detrás de mim, agarrou-me as mãos pelos dedos polegares, descreveu com elas um longo arco para cada lado e elevou-as por cima da minha cabeça esticando-me os braços e colocando os dois dedos lado a lado. “Cá está, tens a espinhela caída” disse-me ela, mostrando-me os dois dedos a par, mas um mais acima do que o outro.
Então, procedeu ao tratamento começando por me fazer um conjunto de exercícios com os braços, cruzando-os e esticando-os, até que voltou a fazer o exame e os dedos passaram a estar nivelados. Para o completar, disse à minha mãe que tinha de fazer uma pequena panela de caldo verde com três gorduras diferentes (porco, vitela e frango) e colocar-lhe um molhe de ervas que apanhara no quintal, com a indicação de que eu tinha de comer tudo e não fazer qualquer esforço.
Na verdade, dos esticões ou do caldo verde, a dor desapareceu e não voltei a ter a “espinhela caída. Mas o caldo verde, culpado ou não desse milagre medicinal, soube-me “pela vida”.
Ainda não era aluno da escola primária e já andava no quintal dos meus pais com a enxada na mão, a rapar a erva e o estrume que fora espalhado pelo senhor Moura, para dentro do rego que ele ia abrindo à minha frente. Em cima do “rapão”, colocava as metades de batata com um bocadinho de cinza à volta (tempos difíceis), cobertas depois com a terra do rego seguinte. Era nesses regos que, com regularidade, também se plantavam as couves galegas.
Nesse tempo, a couve galega era a hortaliça mais vulgar e existia em todos os quintais durante o ano inteiro. Todos os dias se colhia um braçado de grandes folhas, sendo importante na alimentação das pessoas e dos animais.
Se as melhores folhas se destinavam ao caldo (verde ou farrapado), as mais amarelas e os restos iam para as galinhas e porcos, num aproveitamento total. Os “troços” (caules) das couves arrancadas eram os “sticks” dos jogos de hóquei com outros miúdos da vizinhança, sendo o ringue o caminho e a bola uma pedra.
A couve galega consumia-se diariamente pois o “caldo”, com um naco de broa, era (quase) a única comida da maioria das pessoas dessa época.
Com o decorrer dos anos esta couve passou a ser menos cultivada, substituída por outras hortaliças consideradas mais ricas (e mais sofisticadas), até (quase) desaparecer dos nossos quintais e das nossas mesas. E até o Caldo Verde foi deixando de fazer parte do cardápio do nosso dia a dia e passou a ser algo de “pitoresco e folclórico”, só servido no final de uma sardinhada, de uma patuscada ou às tantas da noite numa qualquer boda.
Mas fizemos mal, pela simples razão de que o Caldo Verde, uma das sete maravilhas gastronómicas do nosso país , típico do norte de Portugal mas divulgado em todo ele, é tido como um dos cozinhados nacionais melhores para a saúde, inclusive na prevenção do cancro. E porquê, pergunta-se?
Segundo um médico inglês “É mais importante sabermos o volume de m… diário de uma pessoa do que o valor do seu açúcar ou o colesterol, pois uma boa parte da nossa saúde é diretamente proporcional ao volume da dita cuja”. E continua dizendo que “tendo em conta a importância desse volume, uma alimentação rica em fibras que não chegam a ser absorvidas pelo intestino e saem praticamente intactas nas fezes, aumentando assim o volume fecal e eliminando a prisão de ventre, evita um conjunto de doenças do reto, ataques do coração, hemorroidal e apendicites agudas, entre outras”.
Ora, o caldo verde é rico nas tais fibras não reabsorvíveis e depois, porque também o é em vitamina A, C, complexo B, cálcio, ferro e muitos outros elementos importantes, para além de ter poucas calorias. E quase todas estas características lhe advêm da couve galega, um legume extraordinário que fomos “encostando” ao longo dos anos, sem nenhuma razão especial.
E volto a esse médico precisamente porque ele considera a couve galega (e o Caldo Verde) um legume excepcional que deveria ser consumido com frequência, pela sua riqueza nas tais fibras e a sua importância para o trânsito intestinal.
Por isso, meus caros, para “endireitar a espinhela” ou simplesmente para que o nosso “trânsito intestinal” seja tão fluido como nas autoestradas que se plantaram no interior do país, vamos voltar a fazer do Caldo Verde (com um fio de azeite cru) uma benesse do dia a dia, sem ter de esperar pela sardinhada ou outro ajuntamento qualquer, fazendo honras a essa couve que, sendo galega de nome, é bem portuguesa.