O porquê de não ser um “retornado”

Estava a estagiar na Comissão de Viticultura, a fazer as vindimas na Adega de Lousada, quando o meu pai ouviu na rádio que o Ministério do Ultramar ia promover estágios em Angola, pagando as viagens e uma mensalidade de quatro mil e cinquenta escudos. Para quem recebia novecentos escudos mensais (hoje quatro euros e meio), era fabuloso e uma boa oportunidade de conhecer outras paragens. Por isso, depois do Natal de há cinquenta anos, embarquei no paquete Infante D. Henrique e usufrui durante doze dias de um luxo que não conhecia, com direito a paragem na Madeira na véspera de Ano Novo e a retomar a viagem nessa noite, apreciando o espetáculo da ilha iluminada vista do mar.

Em Luanda fui colocado no Instituto do Algodão juntamente com o colega Zé Abrantes, pelo que nos alojamos numa pensão junto ao Mercado de S. Paulo e durante três meses andamos entre a sede e a Estação Experimental de Ongazanga, próxima de Catete, num velho Land Rover do Instituto, para aprender tudo o que dizia respeito à cultura do algodão.

A estadia em Luanda foi excelente desde o primeiro dia até porque, ao vestirmos calções e camisa de manga curta como toda a gente, não havia diferenciação entre classes, entre chefes e subalternos, ricos e pobres. Para quem ia do continente, onde havia velhos hábitos de feudalismo e nobreza, em que era mais importante parecer que ser, o choque para melhor foi grande. E mais ainda para um jovem tímido, ver-se convidado para jantar aqui, almoçar acolá ou ir a passar na rua e chamarem-no para o baile que estava a decorrer, por gente que acabara de conhecer, era algo de impensável.

Ao fim de três meses fui para Malange onde o Instituto tinha uma delegação, passando a maior parte do tempo na Baixa de Cassange, uma planície com condições agrícolas excepcionais. Também em Malange o acolhimento e hospitalidade que tive foram excelentes, pelo que foram meses de encantamento, gozando de uma liberdade que me permitiu conhecer vastas zonas do norte de Angola. Trabalhei, estudei, aprendi muito sobre a cultura do algodão e alguma coisa sobre aquelas gentes. Naquelas savanas imensas fui à caça, do búfalo à palanca e do javali à zebra, participei em patuscadas, conheci recantos fabulosos dessa África praticamente selvagem e quase virgem, reencontrei histórias do Zé do Telhado e estive junto do seu mausoléu, sofri com os percevejos, os mosquitos e as moscas , o calor e a sede, e até passei com distinção pela caldeirada de cabrito extremamente picante, de tal forma que quem não comeu foi o meu colega que me quis fazer passar por caloiro.

O certo é que, no final do estágio estava encantado com Angola, com África, com o povo que ali habitava, brancos e pretos, e com a forma como as pessoas se relacionavam, se visitavam com assiduidade sem pompas nem pretensiosismos, convivendo, percorrendo grandes distâncias até para tomar um simples café. Tinha grandes espaços, muitas oportunidades de trabalho, uma sociedade moderna muito aberta (o inverso do que era aqui), e gostava do que fazia. Por isso, queria ficar.

Mas, havia um óbice: Estava apurado para o serviço militar pelo que, se ficasse em Angola, seria incorporado em breve e isso não me entusiasmava. Por isso, desisti. E foi este mero acaso que fez com que, uma década depois, não fosse rotulado de “RETORNADO”.

Após o 25 de Abril o país passou por um processo revolucionário complicado, dominado por extremistas e governantes imberbes, cheios de ideais utópicos, que se quiseram ver livres das províncias ultramarinas como de um empecilho, sem cuidar sequer dos milhões de portugueses que lá viviam, metade dos quais lá tinha nascido. E tais (des) governantes criaram todas as condições para que esses portugueses tivessem de fugir de um dia para o outro para não serem abatidos, “com uma mão à frente e outra atrás”, abandonados por quem os devia defender, entregues a si próprios, chamados de colonialistas e malfeitores, de exploradores e indesejáveis, e que, ao chegarem ao seu país, ainda  foram rotulados de “RETORNADOS”, de portugueses de segunda, olhados de lado pelos que cá estavam, como vindos para lhes roubar o emprego, a habitação e o dinheiro.

E hoje esses dirigentes são chamados de “monstros sagrados” (vejo muito de monstro e nada de sagrado) pela descolonização tida (caricatamente) como exemplar, quando na realidade constituiu um dos maiores êxodos da história contemporânea, roubando o passado a esse milhão de portugueses, e lançando-os nus na incerteza do futuro. E eu estive quase a ser mais um.

Ao longo destes anos do pós êxodo, não posso deixar de admirar e render a minha singela homenagem a essa legião que chegou a Portugal (e a outros países), pela forma como deram a volta por cima e se tornaram gente de sucesso, uma mais valia, numa demonstração de que, por alguma razão, foram pioneiros numa terra que julgavam (e era) sua. E compreendo-os bem quando falam e revelam na voz a saudade dessa vida que lhes foi roubada…

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