Zé do Telhado, “E eu é que sou ladrão!?”

Tenho uma atração especial por essa figura mítica, misto de bandido e benfeitor, que foi o Zé do Telhado. Talvez pelas histórias contadas pela minha avó ou mesmo por ter vivido muito perto da casa de Talhos, uma das que assaltou, ficou-me a curiosidade, porque não, a admiração por esse homem.

Nascido há cerca de duzentos anos (1818), foi a partir de Caíde que se tornou homem casado, militar distinto e salteador com cunho de repartidor, louvado no coração do povo.

Tornou-se militar nos “Lanceiros da Rainha” em Lisboa, onde se distinguiu pela sua conduta e coragem, levando-o a tomar parte na luta pelos liberais contra os setembristas. Derrotado, fugiria para Espanha, de onde regressou para aderir à Revolução da Maria da Fonte às ordens do general Sá da Bandeira.

Nessa luta foi notável pela sua bravura, que o levaria a receber a mais alta condecoração de Portugal. Com a derrota da revolução, caiu em desgraça e foi expulso do exército, regressando a casa pobre e ostracizado pelos vencedores.

É o paradoxo: Se a revolução tem vencido, as suas qualidades de valoroso combatente e homem de coragem ter-lhe iam aberto as portas ao reconhecimento como herói, à retribuição dos vencedores e ao acesso às benesses que o poder distribui (já vi este filme…). Mas ao sair vencido, viu-se marginalizado, sem direito a trabalho que lhe permitisse sustentar a família, presa fácil para os que o tentavam para o caminho dos assaltos como única saída.

Como assaltante foi corajoso e, coisa rara, cavalheiro, impondo alguns códigos de conduta ao seu bando, desde o respeito pelos mais fracos e pelas mulheres. Só roubava os ricos e fazia questão de distribuir parte do produto dos roubos pelos pobres.

Foi sempre um homem com dignidade, não virando a cara à luta onde quer que fosse, tanto como combatente ao serviço do reino ou das causas que defendeu, como nos assaltos ou nas disputas nas feiras e romarias.

A benemerência do salteador terá ofendido mais os poderes de então do que propriamente os roubos que fez e talvez por isso tenha sido perseguido sem tréguas. E a denúncia das injustiças sociais fizeram com que fosse tão louvado pelos pobres (e até por ricos), mas um incómodo para o poder.

Como dizia a senhora da Casa de Carrapatelo, onde realizou um dos seus maiores assaltos, “existem pessoas de bem que nunca deram às classes humildes um centésimo do que Zé do Telhado lhes deu”.

É curioso ser precisamente essa senhora de Carrapatelo a dar-lhe guarida na sua casa do Porto nos dias que antecederam a sua gorada fuga para o Brasil, para além de se recusar a fazer parte da acusação e assinar o respetivo auto.

Afinal o que é que essa respeitável senhora viu no assaltante? O ladrão mau, o militar exemplar ou o homem? E ao reler as histórias da sua vida, não posso deixar de o comparar aos ladrões de agora, o que faz dele um “aprendiz de feiticeiro”, um cavalheiro respeitável.

Olhemos as diferenças: Zé do Telhado nasceu pobre, casou pobre e pobre ficou. Os novos assaltantes, se nascem pobres, depressa ficam ricos. Zé do Telhado roubava aos ricos para dar aos pobres. Os ladrões de hoje roubam aos pobres para serem ricos. Zé do Telhado tinha pouca instrução. Os de hoje têm cursos superiores, licenciaturas de fim de semana ou por créditos. Zé do Telhado roubava à noite, mas dando a cara, sem disfarces. Hoje roubam de dia, escondidos em luxuosos gabinetes, disfarçados de banqueiros, gestores públicos, políticos e sei lá que mais. Zé do Telhado andava a pé ou a cavalo.

Os ladrões deste século viajam recostados no banco de trás de potentes máquinas. Zé do Telhado, como militar foi um herói, transformado em ladrão. Hoje há demasiados ladrões transformados em heróis, muitas vezes carregados aos ombros do povo que irão espoliar. Zé do Telhado utilizava a arma ou a força do seu braço para assaltar. Os atuais usam a demagogia, a palavra e a caneta. Zé do Telhado viveu num casebre. Agora os ladrões vivem em condomínios de luxo ou mansões palacianas, pagas pelo “Zé”. Zé do Telhado tinha horror à arrogância. Os de hoje praticam-na. Zé do Telhado serviu o estado (nessa altura o reino) com zelo, dignidade e coragem. Os ladrões de agora servem-se do estado sem qualquer tipo de escrúpulos.

Zé do Telhado foi preso e condenado ao exílio em África. Os maiores ladrões do nosso tempo nunca são presos e são eles que se exilam voluntariamente em “reflexão” e a comer “à la carte”, num qualquer paraíso dourado. Como vivemos num estado de direito (ao que se diz…) onde todos somos iguais, das duas uma: Ou a Justiça faz justiça e mete na prisão aqueles (inúmeros) senhores que ao longo das últimas décadas delapidaram o nosso dinheiro, o nosso património, tratando-os como ladrões, ou que o Povo faça justiça e erga uma estátua ao Zé do Telhado como cavalheiro e homem de bem, retratando-o do que a Justiça lhe fez e elevando-o à categoria de herói nacional, pioneiro na ação social.

Porque somos todos iguais… embora alguns sejam mais iguais que outros… Se fosse vivo e ao ver o que se passa, Zé do Telhado diria: “E eu é que sou ladrão…”

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