O Rio da minha vida

Tal como a escola, o Rio Sousa foi para mim um local de aprendizagem, de entretenimento e lazer e, por isso, tenho para com ele uma relação sentimental, porque é o Rio da minha juventude.

Vivi desde criança em comunhão com a natureza e a educação e a liberdade que os meus pais me deram contribuíram decisivamente para que isso acontecesse. Após a escola, a aldeia era o meu mundo, e posso dizer com toda a propriedade que lhe conhecia todos os cantos. E então nos arredores da casa dos meus pais, não havia pássaro que fizesse ninho sem que eu soubesse, fruteira que não controlasse, esconderijo que não explorasse. E o Rio Sousa fazia parte desse mundo.

Desde cedo fui um cliente assíduo do Amial , a seguir aos Moinhos, aquele lugar aprazível rodeado de amieiros e com um espaço “relvado” junto ao rio, bom para tomar banho, apanhar sol ou fazer um piquenique. Ali estive algumas vezes com os meus pais e muitas mais com miúdos da minha idade, para onde nos escapávamos nos dias quentes de verão.

Foi neste rio que aprendi a nadar o pouco que sei hoje, imitando os outros, o suficiente para manter a cabeça fora da água e não ir ao fundo. Também foi no Amial que comecei por dar mergulhos no “fojo do sr. Mário” e explorar os buracos entre as pedras do rio à procura de barbos ou escalos, dado que as trutas pareciam muito mais difíceis de apanhar, o que viria a descobrir não ser verdade. Se tinha calor, refrescava-me na água do rio, se tinha sede bebia água do rio, e se me apetecia, apanhava sol deitado na erva. E os piqueniques, eram um prazer só mensurável à escala de valores desse tempo…

As margens eram limpas, a água sem qualquer poluição, o peixe abundante e o prazer imenso. Pesquei à cana, com rede e à mão, sem que o senhor Moreira guarda-rios me chegasse a apanhar. Bons tempos.

A pescaria mais marcante foi feita com o meu tio Fernando, um homem para quem a pesca era uma paixão. Numa manhã geada de Janeiro, fui com ele para um “fojo” – sítio fundo do rio – abaixo da ponte da Amieira e um pouco antes da Quinta dos Ingleses. O frio era muito mas o meu tio, apoiado num amieiro, atirou a rede para o meio do rio e, com uma vara comprida, conseguiu estendê-la em semicírculo, com princípio e fim na margem onde estávamos, numa extensão de dez a doze metros. Posicionada a rede, a partir da margem e com a mesma vara, bateu os buracos entre as pedras, fazendo barulho para empurrar os peixes de encontro a ela. As boias começaram a agitar-se fortemente, nalguns casos com violência, e percebemos que o peixe ia ser muito e bom. Chegado o momento de recolher a rede, foi-a puxando com a tal vara mas em dada altura ficou presa a qualquer coisa e, por mais que trabalhasse com a vara, não conseguiu libertá-la. Então, naquela manhã gelada de Janeiro, vejo o meu tio tirar a roupa, entrar no rio completamente nu e com a água fria até ao pescoço, soltar a rede e arrastá-la para a margem carregada de peixe. Que grande pescaria, e que coragem, que ainda hoje me faz… arrepiar.

O tempo passou, a vida profissional afastou-me do “meu” rio e deixei mesmo de usufruir das suas benesses. Ao longo dos tempos o meu contacto com ele passou a ser através de notícias, lidas ou ouvidas, a propósito da poluição que o ia afetando de variadíssimas formas, das consequências em peixes mortos, água colorida e inquinada, algumas vezes um rio de “trampa”.

Foi o preço que teve de pagar pela nossa industrialização em nome do progresso, desse progresso sem sustentabilidade de que nós, e muito mais os que nos precederem, teremos uma fatura muito pesada para pagar. Ouço dizer que continua poluído, sem peixe, mas às vezes penso que, se tiver, provavelmente estará nas mesmas condições em que estão as orcas que os neozelandeses tentam salvar e que já são consideradas “perigosos depósitos ambulantes de resíduos tóxicos”.

Mas o Rio Sousa continua aí, no mesmo leito, parte integrante do nosso património natural e do ecossistema a que pertencemos e que teimamos em destruir, sem nos darmos conta de que estamos a fazer uma guerra contra nós próprios. Saibamos respeitá-lo, preservá-lo e cuidar dele, para o podermos fazer chegar às próximas gerações como o recebemos num passado não muito distante.

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