Quando era criança, e já lá vão umas boas décadas, acreditava que tudo era imutável, estático, sem mudança.
Achava que os ricos de então, os fidalgos, haviam de ser sempre ricos, de nunca precisarem de trabalhar, de viver de mordomias e rendas de caseiros, muitas vezes pagas com o pão tirado da boca dos filhos destes. E havia fidalgos no concelho que eram donos de freguesias quase inteiras, numa espécie de regime feudal à portuguesa, com um património que me parecia tão rico quão indestrutível e perene tal era a sua extensão e grandeza, e que iria durar para sempre.
De festa em festa, os ricos usufruiriam da vida com sobranceria, tendo locais de acesso restrito como era então a Assembleia Lousadense, para onde eu, miúdo, espreitava nos dias de Festa do Senhor dos Aflitos, olhando rostos à janela e pares em rodopio ou em amenas conversas. Ainda retenho na memória alguns desses rostos com ares austeros e solenes.
E os pobres, dos pedreiros aos criados, dos amoladores aos jornaleiros, dos sapateiros aos latoeiros, para essa criança que eu era, continuariam a ocupar eternamente o seu lugar de desprotegidos da sorte, porque nada mudaria.
Os prédios maiores de então, desde o edifício do Tribunal à Câmara Municipal, do Grémio da Lavoura à Casa Valinhas, dos Solares ao Hospital, iriam atravessar os tempos com a mesma dignidade e importância, resistindo às borrascas e às crises.
Ter bicicleta era um privilégio de que usufruí quando fui estudar (outro privilégio) para o colégio Eça de Queirós, em Lousada porque a maioria andava a pé, e descalço. Automóveis eram raros, muito raros, talvez uma a duas dúzias no concelho, e as estradas eram em terra.
Como, aos meus olhos tudo era sempre igual, era este o sentimento de um garoto sobre o mundo que o rodeava, constituído por uma sociedade rural praticamente despida de indústrias, onde tudo me parecia estático, imutável.
Só na adolescência é que viria aprender que, afinal, o mundo é feito de mudança, que o tempo é mudança e que nada é permanente excepto a mudança.
E se a mudança era lenta, muito lenta mesmo, entrou em aceleração com a chegada da industrialização e, por via desta, com a criação acelerada de riqueza e a multiplicação de oportunidades e de esperança.
Desfizeram-se propriedades vendidas por inteiro ou a retalho, caíram preconceitos, demoliram-se casas que eu julgava inexpugnáveis, desbravaram-se matas até então intocáveis, faliram fidalgos, geraram-se novos ricos de gente que só tinha de seu a esperança, o sonho e a coragem de arriscar. Afinal, eu estava errado, porque o mundo à minha volta mudava, e de que maneira.
Mudou-se a tecnologia, a filosofia e a economia, mudaram-se as profissões, as motivações e até os patrões. Mudou-se de casa, e de meio de transporte, mudou-se de vida e mudou-se de sorte. Mudou-se de aldeia, de rua e de cidade, mudou-se a moral, o bem e o mal, etc. e tal.
Até o regime político mudou e com ele os figurantes e os figurões que passaram a prometer mudanças atrás de mudanças até porque, como dizia Dostoievski, “prometer uma mudança, afinal de contas, reduz-se a mentir, por muito respeitável que seja quem promete”.
Muitas foram as alterações da sociedade e tudo, ou quase tudo, mudou, económica e socialmente, ao nível da instrução, da educação e da moral, passamos à era industrial, à era da comunicação e à globalização.
E neste mundo de mudança, eu também fui mudando, de certezas e de verdades, de sonhos e de esperança, da forma de ver o outro e de me ver a mim mesmo, de respeitar todos os seres vivos e o meio ambiente de que faço parte.
A sociedade afinal é dinâmica e tem vindo a acelerar numa ânsia constante de mais e mais mudança, numa eterna insatisfação própria do ser humano.
É evidente aos olhos de qualquer observador atento que aquilo a que vínhamos chamando de mudança ou progresso da sociedade, nos conduziu à beira do abismo, diria mesmo, nos colocou na antecâmara da barbárie. E a única razão para isso é, regra geral, a mudança pela mudança, uma lei que impõe a transformação permanente, seja ela qual for e qual o preço a pagar, bem aproveitada por demagogos mais ou menos baratos, despidos de quaisquer princípios, vendedores de ilusões sem responsabilidade criminal, que se governam mas não governam.
Olhando lá para trás revejo os meus conceitos de criança inocente num mundo que parecia estático. Mas, afinal, acabei por fazer parte de uma geração que viveu e assistiu a transformações e mudanças tecnológicas, económicas, políticas, culturais, sociais, em resumo, civilizacionais, como nenhuma outra geração assistirá através dos tempos.
É verdade que o mundo detesta mudanças e no entanto são a única coisa que traz progresso. Até no ser humano, como dizia Confúcio, “só os extremamente sábios e os extremamente estúpidos é que não mudam”.
E afinal, a mudança é a lei da vida. Até eu próprio “ nem sempre sou da minha opinião”.