A Luísa, para lá dos seus silêncios …

Quase sempre escrevo esta crónica com a Luísa a meu lado de olhos fixos na televisão, qual hipnótico, sem dizer uma só palavra a não ser que “puxe” por ela. E mesmo assim, a muitas perguntas a resposta é dada pelo acenar da cabeça, numa espécie de “preguiça mental” que certa medicação induziu e que só melhorou quando reduzida a dose. Mas, em muitas ocasiões sai do seu silêncio para nos surpreender. 

Na televisão decorria um desses concursos com perguntas de cultura geral. Para “puxar” por ela, nas respostas com escolha múltipla fazia questão de lhe perguntar qual delas achava que era. Como na maior parte das vezes nunca se decidia, eu ia respondendo a algumas. Para insistir na conversação, e como acertei nalgumas respostas seguidas, a senhora que a cuida depois do jantar, sugeriu que eu concorresse e que elas as duas iriam comigo ao concurso. Apesar de dar um ar de distraída, a Luísa encerrou a conversa: “Só que eu não sei assobiar”!!! 

Já lá vão quase catorze anos sobre o dia em que sofreu o primeiro AVC, que se viria a repetir quinze dias depois de forma mais violenta e com consequências graves na sua saúde futura. Apesar das grandes limitações, tem vindo a manter uma certa estabilidade nas rotinas às quais já há muito estamos adaptados. Mas, na perda da memória de curto prazo, na desorientação no espaço e no tempo e de uma quase ausência da realidade, não deixa de ser curioso, agradável e muito animador a conservação da capacidade de resposta pronta, mesmo quando aparenta estar recolhida nos seus silêncios, uma qualidade que sempre foi “uma das suas imagens de marca”. 

A Becas, a nossa cadela, estava deitada no ninho na posição em que costuma dormir, isto é, de barriga para o ar e com as patas dobradas, que é um sinal de que se sente em segurança no dizer de entendidos. A Alice quando a viu, disse: “Olá Becas. Tu estás muito à vontade …” E a Luísa acrescentou: “É a sua posição pornográfica” … Uns dias depois a Alice chegou junto de nós a queixar-se da garganta. “É catarro”, digo eu. E a Luísa, num sorriso: “Dou-lhe um conselho: não a deite fora” … 

Até de noite, quando tenho a certeza de que está a dormir, responde e não percebo como: Acordei e senti a Luísa a dormir profundamente a meu lado. Como precisava de um lenço de papel que estava no lado mais distante da mesinha de cabeceira e não querendo acender a luz do candeeiro para não a acordar, mesmo às escuras estiquei o braço com o intuito de chegar à caixa quando senti que toquei noutra coisa. Logo de seguida ouvi o barulho de um objeto a cair no chão. Era a garrafa de água que se encontrava no local errado. Mal ela caiu no chão com estrondo, a Luísa perguntou-me: “Estás a ver se consegues deitar a casa abaixo”? E no momento seguinte retomou a respiração ritmada e profunda, sinal de quem está a dormir muito bem … Ainda fiquei à espera para ver se dizia mais alguma coisa, mas continuou a dormir como se nada fosse.

Já num amanhecer, ao sentir que ela tinha acordado, acendi a luz do candeeiro, levantei-me e abri a persiana para deixar entrar a luz do dia. Sem mais nem menos, ouvi-a interrogar: “Vais sair pela janela”?

A minha cunhada Teresa vem cá a casa diariamente e é também uma das suas “cuidadoras informais”. Um dia cheguei a casa e soube que ela tinha levado a Luísa a passear durante a tarde, indo até Paredes. Para me meter com a Luísa, perguntei: “E viste muitas paredes”? Com resposta imediata, calou-me num instante: “Vi as que lá havia”!!!

Há ocasiões em que parece até que nem está a dar atenção nenhuma ao que se passa à sua volta nem ao que se diz, mas no momento certo intervém. Foi assim que ao mudar de canal, vi que o F. C. Porto estava a jogar com o Benfica para a Taça de Portugal. A Teresa apercebeu-se disso e perguntou qual era o resultado. Respondi-lhe: “Ao intervalo, o Porto está a ganhar por três a zero, mas vai jogar na segunda parte com menos um jogador”. E ela quis saber: “O que lhe aconteceu”? A Luísa, que se encontrava ao nosso lado e aparentando estar ausente da conversa, antecipou-se na resposta: “Foi à casa de banho” …

Uma cuidadora que nos ajuda em função das suas disponibilidades é a Alice e que tem por hábito tentar estimular a Luísa falando bastante com ela para a motivar e fazer sair do mutismo que lhe é habitual. No momento falava-lhe dum primo, bebé com dois meses e dele passar as noites a berrar. “E berra assim tanto?”, perguntou-lhe a Luísa. “Ai berra, berra”, respondeu-lhe ela, que mora a alguns quilómetros da nossa casa. E a Luísa não hesitou: “É que eu não o ouço” …

Numa dessas ocasiões, já cansada de a ouvir falar e sem vontade de participar na conversa, a Luísa mandou-a calar. No entanto, a Alice insistiu em provocá-la, mas ela voltou a dizer-lhe: “Cale-se”. Perante esta nova ordem a Alice perguntou: “Então quando é que eu posso falar”? E recebeu a resposta: “Quando se for deitar”!

Às vezes interrogo-me sobre esta sua capacidade de responder muito assertivamente quando nem sequer se esperava que estivesse a ouvir e fica-me a dúvida se o faz por instinto, num ato reflexo ou é mesmo o dom de ter sempre uma boa resposta na ponta da língua. Ainda hoje, enquanto falava com uma pessoa amiga junto da Luísa, usei o ditado “porque o seguro morreu de velho” e logo ela rematou: “mas morreu na mesma”. E desligou.

A meio da noite despertei ao ouvir a Luísa a perguntar-me: “Oh Zé, estás acordado”? Ainda bem ensonado respondi que sim. E veio nova pergunta: “E estás bem”? Respondi-lhe dizendo que sim e perguntei se ela também estava. Respondeu-me com um “sim, também estou”. Mas acrescentou: “Como dizia o meu pai, se não for mais, que seja sempre assim”. E em menos de um minuto a sua respiração voltou a ser o sinal de que já estava “virada para o lado que dorme melhor” …

Seis horas da manhã. Sinto a Luísa mexer-se e depois começa a falar: “Estão a doer-me os pés”. Levanto-me, acendo a luz e vou massajar-lhe os pés depois de aliviar a pressão da roupa naquela zona. E então ela concluiu: “Se calhar andei a correr à noite e não me lembro”! 

Para mim é surpreendente esta forma espontânea de dar respostas que eu não conseguiria, nem na forma nem no conteúdo, de alguém que permanece a maior parte do dia alheada do que se passa à sua volta. E mais ainda, quando está literalmente a dormir e é capaz de dizer algo ajustado ao momento, sem acordar, como um sonâmbulo. Mas sobretudo uma lição de que não podemos nem devemos desistir de ninguém na doença, por mais grave que seja a situação. Muitos médicos acham que os doentes em estado de ausência ou mesmo de coma, podem ouvir e perceber o mundo ao seu redor. Por isso é tão importante que haja alguém a cuidar, comunicar ainda que sem ter respostas, decifrar e interpretar as sensações e reações. Porque por mais “distantes” que estejam, as palavras sentidas de uma pessoa querida são um estímulo para continuar e um sinal de que não estão sozinhos nesta jornada terrena … 

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