Um transporte que passou à história

Às vezes penso que nasci na Idade da Pedra ou algo muito parecido, tais as diferenças entre esses tempos e os dias de hoje. Basta lembrar     que um dos irmãos da minha avó, meu tio avô, tinha a profissão de “carreteiro”. “O que é isso”, perguntaram-me há dias? “Carreteiro” era aquele que fazia transportes de mercadorias diversas em “carro de bois”. Eu ainda sou da era do carro de bois como meio de transporte mais usado nas zonas rurais, como era o caso da minha aldeia. Neles se carregavam os produtos agrícolas, das espigas de milho às pipas de vinho, da palha de centeio ou milho ao mato para “encher “cortes”, além de materiais de construção tais como pedras de perpianho de granito ou toros de madeira. 

E o mais impressionante em relação a esse meu tio-avô é que fazia o transporte de mercadorias de Lousada para o … Porto. Imaginemos a aventura que era fazer a viagem num desses carros, todo ele feito em madeira incluindo as rodas (que só eram revestidas por uma grossa chapa de ferro), sempre puxado por uma “junta de bois”, carregado com uma pipa de vinho de quinhentos litros ou mais (que queria dizer mais de meia tonelada) e enfrentar as estradas difíceis de então até à cidade do Porto para, depois de ali ter descarregado e arrumado a pipa no cliente, regressar a Lousada carregado com outras mercadorias!!! É preciso ter noção do que é um desses “carros” para avaliar corretamente o que era exigido a todos os níveis, tanto ao “carreteiro” como à “junta de bois” e ao “carro”, nessa viagem de ida e volta, que ele fazia com regularidade, porque era necessário transportar para a “cidade” produtos agrícolas como vinho, milho, batata, feijão, centeio, etc., além de madeiras e outros materiais.

Todos os lavradores tinham pelo menos um carro para seu serviço, fundamental nas lides do campo. E, para o puxar, pelo menos uma “junta de bois”, isto é, dois bois que tinham de ser emparelhados e treinados para puxarem solidariamente. Lavrador que não tivesse uma “junta”, não era lavrador. Andei muitas vezes de “carro”, ainda criança, ao ritmo do chiadoiro dos rodados, resultado do roçar de madeira contra madeira, mesmo quando eram untadas com azeite para facilitar a tração. Segurava-me nos “fueiros”, uns paus de altura variável “espetados” a toda a volta do carro para segurar as cargas, como no caso de mato, madeira, lenha e palhas diversas. Para poder transportar milho, espigas, melões, abóboras ou outros produtos do género, os “fueiros” eram trocados por taipais e percebe-se porquê.

Várias vezes acompanhei a minha avó paterna e o senhor Moura ao monte onde iam cortar mato. Começavam muito cedo, ao nascer o dia e a meio da manhã já tinham cortado mato mais que suficiente para carregar um carro. Eu também levava enxada, mais pequena que as deles de acordo com os meus sete ou oito anos de idade e ia fazendo a minha (pequena) parte. Como a minha avó não tinha carro de bois, encomendava o serviço ao caseiro de uma quinta, conhecido dela, e era interessante assistir ao carregar, com o “carreteiro” em cima e o senhor Moura em baixo a “chegar-lhe” o mato usando uma forquilha, fazendo com que a carga fosse subindo e subindo, até chegar a uma altura em que era preciso uma escada para subir ao alto da carga. Mas, no meio daquilo tudo, o que mais me impressionava era que, apesar do mato ser “bravo”, de picos aguçados, ninguém se picava, embora andassem calçados com “socos”, quando não descalços.

Quase todas as casas eram construídas em perpianho de granito, a pedra da região rachada ou mais ou menos trabalhada. Cortada nas pedreiras locais, era toda transportada em carros de bois. Ainda trago na mente as imagens dos homens a carregar pedras daquelas, algumas com dois metros de comprimento e mais, pesadíssimas, mas todas levadas para cima do carro de bois à força de braço porque não havia mecanismos para o fazer. Rachadas na pedreira também à mão, eram levadas até junto do carro aos tombos ao ritmo cantado de um “Upa! Upa! Upa” e subidas sobre duas traves de madeira de forma semelhante, até serem acondicionadas no carro. 

Recordo a história da mulher do caseiro duma das quintas de um proprietário abastado da região. Estava em construção a casa do senhorio na propriedade e este tinha convocado uns quantos “carreteiros” para levar as pedras da pedreira para junto da casa em construção. À mulher do caseiro coube a tarefa de fazer um cozido à portuguesa para alimentar todos os homens que participaram no transporte. Quando eles chegaram, o caseiro ficou muito preocupado pois, ao contá-los, verificou que eram quase o dobro do que lhe tinha dito o senhorio, tendo ido logo contar à mulher o que constatara. “E agora”, dizia ele, “não vai haver comida que para todos”. Mas a mulher não se apoquentou: “Não te preocupes que eu cá me arranjo. Vai à adega e traz presunto, azeitonas, algumas broas de milho e o pipo de vinho maior. Antes de virem almoçar vais pô-los a petiscar bem e a beber melhor e vais ver que a comida vai chegar e sobrar”. E assim fizeram. Os “carreteiros” e outro pessoal ajudante fartou-se de comer broa, presunto e azeitonas, regado com vinho tinto. E, quando foram almoçar, nesse tempo de dificuldades, já não foram capazes de dar conta do cozido que aquela mulher serviu com humildade, honra e sabedoria … 

O carro de bois, que serviu gerações e gerações ao ponto de deixar a sua marca bem vincada na rocha dos caminhos rurais da região pelo desgaste do ferro que cobria os rodados, ao moer a pedra no dia a dia ao longo de muitas décadas, talvez séculos, passou à história e hoje já não passa dum objeto de museus, substituído pelos tratores e outras máquinas que a evolução tecnológica impôs, sem que a sociedade se tenha apercebido verdadeiramente dessa transição, ignorada pelos mais novos e esquecida no tempo por muitos outros …     

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