O primeiro dia do resto da outra vida…

O pensamento é como a corrente de um rio em movimento perpétuo e nada o faz parar. Por isso, naquele funeral não pude conter a força dessa corrente e deixei-me levar por ela e pelo que via ao meu redor.

Ao ver aquela fila interminável de filhos, genros, noras, irmãos, tios, sobrinhos, netos, cunhados, além de primos nos mais diversos graus, a receber os pêsames (e tantos eram que preenchiam as paredes da capela mortuária e ainda saíam porta fora), não pude impedir que o pensamento recusasse aquele “sacrifício”, em especial para alguns jovens que mostravam “estar no filme errado”. Por isso, comecei logo a fazer mentalmente a lista de “requisitos” para quando chegar “o meu dia” e for eu “o motivo” dum “ajuntamento” semelhante. 

Para começar, quero ser “o único morto da sala”. Eu serei suficiente. Mais que suficiente. E opto por isso pois, ao cumprimentar algumas pessoas em velórios ou funerais, estendem-me uma “mão morta”, de onde a vida se escapou. E não estão no caixão …

Não quero a fila interminável de familiares a receber cumprimentos de quem vai à capela mortuária. É cansativo e deixa desorientados os que chegam pois não conhecem a maior parte deles, ficando mesmo sem saber quem cumprimentar. Na dúvida, cumprimentam-se todos os que estão na fila e diz-se “os meus sentimentos” a uns e a outros. Mais do que tudo, o funeral é uma despedida daquele que parte e bastam os filhos para receber e agradecer a todos aqueles que forem despedir-se de “quem parte.  Ora, quando for “eu a ir embora”, são os meus filhos que eu mandato para agradecer em meu nome. Ninguém mais, por muito que sintam a minha partida. Não quero tal sacrifício, absolutamente inútil, que o é para quem ali está a receber, como para quem vai cumprimentar. No entanto, quero-os sorridentes, com boa disposição ao receber e agradecer em meu nome. 

Muito mais do que num casamento (onde as coisas podem correr mal), o “despacho do morto” tem todas as razões para correr bem. Porque o morto já não chateia mais nem vai moer o juízo a ninguém. Já não precisa que lhe engraxem os sapatos nem passem a roupa a ferro. Não ocupa a casa de banho quando os outros precisam, nem as pessoas …

Numa questão sou exigente e não cedo. Esqueçam se pensam que me vão vestir formalmente, de fato e gravata. Nem pensar. Já me basta quando os compromissos o exigem. Mas para uma viagem que eu não quero fazer e para onde só me levam à força – e é precisa a força de quatro homens para me “pôr a caminho” – então vou como bem me apetece. Até porque, se chegasse às portas do Céu assim “fardado”, S. Pedro não me reconhecia e podia pensar que estava disfarçado para o enganar. Para “ir confortável” tenho de vestir calças de ganga, polo ou camisa desportiva e botas de cano alto, porque vou passar o resto dos meus dias “com os pés na terra”. E as botas dão muito jeito. As calças de ganga começaram a ser usadas pelos mineiros, até que o pessoal da moda lhes roubou o protagonismo. Como também vou fazer vida de “mineiro”, faz todo o sentido a ganga. Quando muito, se “partir de viagem” no inverno, vistam-me uma camisola de gola alta e impermeável, porque a humidade ataca-me os ossos e o reumático é insuportável …

Esqueçam o preto. No meu funeral ninguém vai de preto. É a cor dos “mortos” e eu quero “estar vivo” nos que se derem ao trabalho de se irem despedir de mim. Só gosto do preto em vestidos de cerimónia, com certas “características” … porque, preto e de bico amarelo, só os melros. Por isso, nada de roupas escuras, nenhum sinal de luto. Só haverá motivos para festejar e celebrar, porque toda a gente vai dizer que “fui desta para melhor”. E quem “vai desta para melhor”, só pode estar entusiasmado e feliz. Vistam informalmente e usem cores bem garridas, mas não de vermelho. Nem nas touradas para lidar o touro.

Numa “reunião social” como aquela, é importante música de fundo para criar ambiente. Apesar de na adolescência a música francesa e italiana serem as dominantes, a irreverência e o génio dos Beatles, além desse fabuloso duo que dava pelo nome de Simon & Garfunkel, marcaram-me profundamente. Por isso, a música de fundo tem de ser de uns e outros, sendo que dos primeiros não pode faltar o “All you need is love” porque na realidade “todos precisamos de amor” e dos segundos, é imprescindível a extraordinária melodia “The Sounds of Silence”, mais do que adequada para o momento, pois os “Sons do Silêncio” passam a ser os únicos que terei por companhia …

É tradicional oferecerem flores, muitas flores, a quem já não as pode ver nem cheirar. Enquanto vivo, gosto muito, mas quando a caminho da cova, não me deem aquilo de que já não posso usufruir. Por muito que goste de flores, passarão a ser uma inutilidade sem sentido que não me fará feliz. E então as tradicionais “coroas de flores”, nunca. “Cheiram a morto” e é coisa que eu não quero que se sinta nesse dia …   

Para quem se vai despedir de mim, tenho a obrigação e até o dever de “dar a cara”. Mas desde já peço desculpa por não o fazer. Vou ficar “atrás da porta” que permanecerá fechada. É que, dado o meu “estado de saúde”, terei um “ar amarelado” que não augura nada de bom e me deixa com mau aspeto e sem um sorriso, por mais ténue que seja. Daí optar por ficar “oculto”, deixando aos filhos as relações públicas. Vou querer um “armário” XXXL. Não gosto de me sentir apertado e posso precisar de coçar as costas e outras partes de vez em quando, o que seria uma chatice se não tivesse espaço de manobra …

São cada vez mais aqueles que escolhem ser cremados. É um direito que lhes assiste e deve ser respeitado. Mas não estou para aí virado. Iria pensar que já estava no inferno quando “começasse a aquecer” o que, se vier a acontecer, que seja o mais tarde possível. E acho até que seria um desperdício duplo. Da energia gasta para me “assarem” no forno e da perda dum corpo humano como fonte de matéria orgânica tão necessária e útil a outros seres vivos. Em boa verdade, apesar de corpo morto, não deixa de ser uma fonte de vida, que seria inutilizada se incinerada. Por isso, quero regressar à terra para dar vida a outras vidas, para que “nada se ganhe, nada se perca e tudo se transforme” …

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