O “Caminho” faz-se caminhando …

O que faz alguém pegar numa mochila às costas com meia dúzia de coisas essenciais para o seu dia a dia e “fazer-se à estrada” sem mais, tendo um objetivo que está a duzentos e quarenta quilómetros de distância? Sempre são duzentos e quarenta mil metros que, “à pata”, correspondem a mais de quatrocentos mil passos … como se fosse já ali. Há muita gente que o faz. Muito mais gente do que nós podemos imaginar. E os motivos são muito diversos. Há os que o fazem porque são desportistas, amadores ou profissionais, amantes do exercício físico. Visam a melhoria da condição física e, eventualmente, alguma competição. Nunca fui um desses. 

Depois temos os que gostam de fazer caminhadas, uma forma de conhecer zonas inacessíveis e que os municípios têm promovido com a criação de trilhos mais ou menos bem tratados. Arrastado pelo casal Teresa e Agostinho, já fui um deles (e de vez em quando ainda sou) pelo prazer da descoberta, do encontro com a natureza, de trocar o tradicional circuito turístico no conforto dum automóvel pelo trilho de terra, às vezes muito mal assinalado, percorrido passo a passo. Foi assim que “vi com outros olhos” a ilha da Madeira em dose dupla, as ilhas do Pico e S. Jorge nos Açores e alguns locais isolados cá no continente. 

Muito pouco, se comparado com aquilo que aqueles dois felizardos já percorreram enquanto caminhantes pela caminhada, pela beleza da natureza que defendem, pelo gosto de conhecer. E há os outros, na sua maioria amadores sem a prática diária de andar muitos quilómetros, que se põem a caminho pela sua religiosidade para cumprir uma promessa, como é o caso de Fátima, um ponto de destino para imensa gente.

Na semana anterior ao dia doze dos meses de Maio a Outubro, pelas estradas e caminhos do país é comum verem-se homens e mulheres de coletes refletores, tendo Fátima como destino. Movidos pela fé, para cumprir uma promessa ou pela simples devoção a Maria, novos e velhos partem dos quatro cantos do país, engolindo quilómetros e vencendo o cansaço. Rezam o terço, sofrem, cantam, animam-se uns aos outros e carregam os seus males e os dos seus, na esperança da Senhora de Fátima os ajudar. Se há quem caminhe dez quilómetros ou menos, há também quem passe dos trezentos. A Luísa já cumpriu a sua promessa e foi peregrina de Lousada a Fátima. 

Há muitos anos, quando estudava em Coimbra, fiz o caminho a partir dali e regressei à boleia na caixa de carga de uma camioneta, entre melões e melancias. Em regra, quem se mete à estrada a caminho de Fátima é devoto e é a fé o seu alento. E que alento …

Há ainda o caso especial dos Caminhos de Santiago, que move todos os anos inúmeros peregrinos, numa multiplicidade de motivações única que vão das religiosas às espirituais, das de simples caminheiro a retiro místico, de turista da natureza a encontro consigo mesmo. Já há muitos anos ouço falar nos Caminhos de Santiago, mas nunca senti “o chamamento”, nem sequer curiosidade de conhecer o mito que os envolve, a transformação que provocam em tanta gente que, por uma ou outra razão, se aventurou a partir de um ponto mais ou menos distante de Compostela. No entanto, de há um ano a esta parte, tenho “tropeçado” com bastantes pessoas que já fizeram “o Caminho” e com muitíssimas mais que sonham vir a fazê-lo. O denominador comum nos relatos é que todos dizem ter sido o “Caminho da sua vida”. Mais: sonham poder voltar. Foi desta forma que o meu interesse despertou e passei a ler histórias, relatos, conselhos e reportagens de quem se fez à estrada e passou por essa “experiência redentora”, nas palavras dos peregrinos. Muitos deles são profundos e emocionantes, fazendo com que, aqui e ali, tivesse de parar para limpar as lágrimas. É certo, fiquei “agarrado”. Decidi que tinha de fazer “o Caminho”. A partir de onde e como, haveria de pensar nisso. E quando? O mais depressa possível. Não podia perder tempo, porque já não tenho tempo para esperar muito tempo.

Para quem acredita em “sinais”, aconteceu. Pouco depois de tomar a decisão, recebi uma mensagem vinda dos Açores: o meu primo Nuno desafiava-me a partir para Compostela, fazendo “o Caminho” a partir do Porto. Coincidência? Sinal? Cada um acredita naquilo em que quer acreditar. Para mim, era o Sinal, com significado. O aviso de que devia “fazer-me à estrada”. Todos aqueles com quem falei são unânimes ao dizerem que, tal como na vida, cada um “faz o seu Caminho”, feito de solidariedade e solidão, de sofrimento e descoberta, de reflexão e partilha. E encontrei entre eles religiosos e devotos no cumprimento de alguma promessa ou devoção a Santiago, outros cujo objetivo foi uma vivência espiritual, mística, num encontro consigo mesmo e até quem foi na onda por curiosidade e chegou transformado. Mas não é algo que se possa fazer de ânimo leve, sem um preço … 

Não fiz promessa a Santiago, mas vou partir como peregrino, sem a pressão de ter de lá chegar em data certa, nem sequer de lá chegar já. Vamos ver até onde a “máquina” aguenta e logo se verá. Se ficar em qualquer ponto da estrada por qualquer imponderável, ou porque o físico não aguentou, voltarei para o retomar e levar até ao fim. E não será isso que me vai tirar o sono. Mas que vou lá chegar, vou …

Com menos preparação do que seria aconselhável e de mochila às costas, farei do “Caminho” um tempo de paragem na “corrida de cada dia”, sem a pressão e a pressa diária de chegar seja lá onde for. Serei mais um peregrino a ter Santiago como patrono nesta peregrinação a terras de Espanha. 

O que espero? Mais do que conseguir carregar-me até Santiago, ser capaz de refletir e meditar sobre o “meu Caminho”, o que ainda posso fazer neste “entardecer” para aligeirar o de outros e ser capaz de fazer a “aceitação” dos “percalços” que vou encontrar no resto do “trilho” que me falta percorrer, sem culpas, sem revolta … E, se o conseguir, serei “um milagre de Santiago” … 

Leave a Reply