Durante a primeira quinzena do mês de Agosto o inferno entrou-nos casa dentro através das imagens televisivas dos noticiários, de matas, casas, culturas e palheiros a arder sem controle. Mas, o verdadeiro inferno foi vivido por aqueles que viveram esse drama e viram as chamas devorarem-lhe os bens, o fruto de uma vida de trabalho. Dizia-me um homem que lutou para salvar o “seu canto”, muito impressionado: “Nunca imaginei como somos tão pequenos diante de uma barreira de chamas tão alta e violenta. E, o que mais me surpreendeu, foram as línguas de fogo que voavam por cima de mim e a facilidade com que ateava novas frentes, obrigando-nos a lutar até à exaustão”. No conforto de nossas casas e à distância, as notícias sobre os incêndios cada dia maiores e mais devastadores, impressionavam. Mas, pouco depois, outros programas, outros afazeres, faziam esquecer o drama que se vivia em muitas regiões do país. Em desespero e aflição ficavam as populações atingidas e, em sobrecarga, os bombeiros deste país, na sua maioria voluntários dedicados à causa, dedicados aos outros.
Quando a dimensão dos incêndios atingiu proporções anormais, para além das notícias e imagens dos mesmos passamos a ser bombardeados com os comentários de analistas, especialistas, ambientalistas, políticos e todo o tipo de entendidos (ou não) neste fenómeno, apontando todos soluções, recomendações, estudos, sugestões de leis, penalidades e planos, coisas que na sua maioria já ouvimos repetidamente noutros anos a quando de outros picos de crise incendiária. E depois, quando chegou a chuva e acabou de apagar os últimos vestígios de fogo, os planos de ordenamento da floresta, o reequipamento das Corporações de Bombeiros e todos os planos de prevenção caíram no esquecimento. Claro, quem é o tolo que é capaz de se lembrar de fogos em pleno inverno?
Tal como noutras ocasiões, ouvimos guardas e vigilantes a acusarem o estado de abandonar a floresta. Mas não sabemos todos que já fez isso há muito tempo? Que os bons Serviços Florestais que existiam desapareceram e hoje fingimos que os temos?
Lemos e ouvimos que os aviões custam “uma pipa de massa por hora” e passam muito tempo em terra, com críticas de todos os lados a dizer que “quase não chegam a lado nenhum”. E, para evitar que o combate aos incêndios por meios aéreos não seja um “rico negócio” como tem sido, porque é que não temos aviões desses entregues à Força Aérea? E ouvimos os pedidos para se fazerem leis mais severas para os incendiários, como se isso resolvesse o problema. Ou que as autoridades devem ser mais duras com os proprietários que não limpam as matas, como se um reformado que ganha a pensão mínima e tenha um ou dois hectares de mata algures no meio do monte possa dar-se ao luxo de gastar muitos euros que não tem para a limpar, se os vizinhos não o fazem? E ouvimos os gritos de alerta contra a plantação, indiscriminada e só, de eucaliptos, fazendo com que nalgumas regiões já sejam os donos exclusivos das matas. Mas não ouvimos isso há tantos anos? E o que se fez?
Evacuaram-se aldeias, populações realojadas, passadiços do Paiva outra vez queimados, centenas de casas devoradas pelas chamas, milhares e milhares de hectares de mata de luto, mobilização geral dos bombeiros cansados e levados à exaustão, numa luta inglória contra o fogo que tinha a seu favor os ventos fortes e temperaturas altas. E as queixas habituais do subfinanciamento das corporações, das viaturas e material a precisar de ser renovado, do insuficiente avanço tecnológico e das condições de segurança.
E agora, que o tempo está a esfriar, caíram os primeiros chuviscos e quando a meteorologia trouxer uma boa regadela e colocar o ponto final (até ver) nos incêndios, a sirene vai calar-se e os bombeiros, enfim, vão poder descansar e regressar às suas vidas nem sempre fáceis e… ser esquecidos. De heróis de há poucos dias, passarão a ignorados, talvez até criticados por não terem estado a tempo em vinte locais em simultâneo. A solidariedade para com os soldados da paz vai esfriando por contágio do frio que o inverno traz. É que a nossa casa, a nossa mata, já não estará a arder…
E tudo isto porque vi em frente do quartel dos Bombeiros Voluntários de Lousada uma grande lona da corporação, onde se pode ler: “OBRIGADO LOUSADENSES”… Não queria acreditar e não faz sentido. Aqueles a quem todos nós, sem exceção, temos de estar muito agradecidos pelo trabalho duro, violento e incansável que têm e tiveram, especialmente nestes últimos dias, ainda nos agradecem? Pelo contrário, em todas as localidades as populações deveriam sair à rua numa manifestação de agradecimento a esses heróis anónimos que só têm nome quando morrem no combate. E o bom exemplo veio do Funchal, onde a população se manifestou e foi agradecer aos que por ela combateram. Percebo a intenção do “obrigado” dos bombeiros mas está tudo ao contrário. As Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários não são uma qualquer instituição descartável, dispensável, como muitas outras. Têm uma missão de que a sociedade não pode prescindir e, por isso mesmo, deveria ser obrigatório uma quota por cada cidadão e outra pelo património de cada um, para assegurar a sua sustentabilidade e garantir condições adequadas para poderem cuidar da nossa segurança e dos nossos bens, sem terem de mendigar e estar dependentes do estado e do lado para onde os políticos estiverem virados. Porque é da nossa segurança que se trata quando falamos de Bombeiros. E, mais ainda, porque são Voluntários…
Por isso, agradecidos (e muito) temos de estar todos nós…