A humildade é um valor que tende a “passar de moda” neste nosso mundo agitado do “consome e deita fora”, esquecida como trapo velho desajustado no tempo. E se já é coisa rara entre o cidadão comum, o que se poderá dizer naqueles que atingem o sucesso económico e financeiro, o “estrelato” ou o mediatismo, que quase sempre são acompanhados de arrogância e exigências de “intocabilidade”, como se usufruíssem de algo parecido com a “imunidade parlamentar” dos deputados? Muitos têm-se perdido pelo fulgor dos seus talentos, pelo estrondo dos seus sucessos, pelo êxtase dos seus triunfos, ofuscados pelos aplausos, pelas benesses, pelas reverências de que são alvo. Certo é que nenhum se perdeu ainda por sentimentos de verdadeira humildade…
Fui diretor de prova de múltiplos eventos automobilísticos que o Clube Automóvel de Lousada realizou ao longo de mais de duas décadas, tanto nacionais como internacionais, em diferentes disciplinas. Um diretor de prova é o responsável de toda a organização desportiva, da gestão da equipa de colaboradores e por controlar tudo o que se passa no decurso das corridas. Uma das suas principais intervenções tem a ver com o comportamento dos pilotos em pista, agindo quando estes atuam à margem dos regulamentos, o que exige a aplicação de sanções mais ou menos pesadas como advertências, exclusões ou desclassificações, nada agradável para ninguém. Sempre que um piloto utilizava o recurso ao “toque” ou “empurrão” para ultrapassar quem lhe ia à frente, atirando a outra viatura para fora da pista ou provocando o “capotanso” do adversário para se aproveitar e fazer a ultrapassagem, mandava exibir a bandeira preta, sinal de que o prevaricador devia parar e sair da corrida, penalidade que apliquei sempre que as circunstâncias o exigiram, sem receio nem olhar a quem. Em quase todas as provas houve necessidade de exibir essa bandeira, para travar o ímpeto antidesportivo de alguns pilotos, muitas vezes fruto de “picardias” pessoais, pelo que tive de falar com muitos deles e, regra geral, as suas reações eram negativas, recusando responsabilidades no incidente de que saíram beneficiados como se nada tivessem a ver com o “atirar o adversário borda fora” para o passarem. Houve até quem manifestasse alguma agressividade com insinuações veladas, apesar de poderem recorrer para o “colégio de comissários desportivos”, uma espécie de “árbitros” que vigiam a prova.
Como a regra era a reação negativa e a não aceitação da justiça da penalidade, nunca esquecerei o ocorrido numa prova do Campeonato da Europa de Ralicross, realizada no Eurocircuito de Lousada. Sendo um evento de alto nível, estavam em jogo grandes interesses, não só de marcas de automóveis como de patrocínios a pilotos, cujos montantes dependiam dos resultados obtidos. Daí que, uma exclusão ou desclassificação, nunca era bem vista pelo atingido, especialmente pelos pilotos mais conceituados pois eram os que mais tinham a perder. Ora, numa das mangas de qualificação dessa prova estava em pista o campeão europeu em título Kenneth Hansen, piloto sueco apoiado pela Citroen várias vezes campeão europeu, em disputa com outro dos candidatos à vitória na prova. No arranque, Kenneth Hansen foi surpreendido pelo adversário que assumiu a liderança e não mais a largou, apesar da intensidade da perseguição e das muitas tentativas de ultrapassagem que lhe foi fazendo. Até que, em nova tentativa numa das curvas na parte alta do circuito, travou um pouco mais tarde do que devia, fazendo com que a sua viatura deslizasse um pouco e empurrasse o adversário para o exterior da curva, com ou sem intenção, mas aproveitando para o ultrapassar. Mas eu vi o “toque” e o “tirar partido” do incidente. Na passagem pela meta já o aguardava a bandeira preta por indicação minha, o que fez com que saísse de imediato da pista. Quando a corrida terminou e desci do posto de controle onde me encontrava, ele estava à minha espera. Dirigiu-se-me com um sorriso tímido nos lábios e começou por pedir desculpa por ter criado aquela situação, assumindo a responsabilidade da ocorrência e dando-me os parabéns pela pronta aplicação da penalidade. E foi-se embora renovando o pedido de desculpas… Incrível. Foi caso único nas minhas mais de duas décadas de direção de prova. Um gesto de humildade do Homem que não se escondeu atrás da arrogância típica dos vencedores, de alguém com um palmarés desportivo invejável, só suplantado pela grandeza do seu estatuto moral.
Kenneth Hansen, apesar da sua condição de piloto de exceção, de figura grande do desporto automóvel, admitiu o seu erro e aceitou as consequências como um ato de justiça, sem o querer passar, erradamente, para terceiros, fazendo jus à afirmação de que “o homem de sucesso demonstra a sua grandeza, não pela forma de comemorar os êxitos mas pela maneira como reconhece os seus erros ”…