Ao contrário do que é habitual, estou vestido de fato e gravata quando entro numa igreja antiga e bonita, toda renovada, onde não faltam flores, montes de lindas flores. Vê-se um grande número de familiares e ainda mais de amigos, reunidos nesta solenidade especial presidida pelo padre da paróquia, que celebra missa e faz uma homilia simples mas bonita, com palavras suficientemente simpáticas para fazer correr algumas lágrimas entre os presentes. Onde estou eu? Que celebração é esta? Deitem-se a adivinhar e vão dando palpites… Será um casamento? Ou, pelo contrário, estou num funeral? Não é fácil descobrir, tantas são as semelhanças…
Num funeral só é preciso um morto enquanto para um casamento são precisos dois (vivos, se bem que um deles rapidamente passará à condição de “morto”). Familiares e amigos elegantemente vestidos estarão num e noutro, com toiletes exuberantes e de cores garridas no casamento mas contidas e escuras no funeral, se bem que neste a roupa dos homens se tem tornado cada vez mais informal. Nos enlaces, as toiletes das senhoras cada dia são mais requintadas, mais “exclusivas”, e não voltarão a ser usadas noutro evento. A sua maquilhagem é cuidada e trabalhada e até os homens poem um “cheirinho” agradável. No funeral, só a “toilete” do falecido será usada naquela ocasião e em nenhuma mais… E, quanto a maquilhagem, para além das senhoras como é habitual, só nalgumas localidades o falecido “se entrega” nas mãos de alguém com o curso técnico de “necromaquilhagem” para ficar com “bom aspeto” diante dos “convivas”. Na véspera, de um lado há despedidas de solteiro(a) entradas pela noite dentro, regra geral muito animadas e bem regadas com todo o tipo de bebidas alcoólicas, enquanto no outro se faz o velório, noutros tempos atravessando a noite aquecida por uns copos de “bagaço” mas, nos dias de hoje, “a seco” e só durante o dia pois à noite é penoso.
Ambos são o ponto de encontro ideal para se encontrar velhos amigos e familiares, gente que se não vê há muito tempo, motivo de recordações entre os mais idosos e de partilha de histórias antigas vividas em conjunto. Contam-se anedotas e piadas, relembram-se amigos comuns, pergunta-se por outros a quem se perdeu o rasto, num animado convívio, mais contido num e mais alardeado noutro.
A música está nos dois acontecimentos pois, se na saída da igreja um se faz acompanhar da “marcha nupcial”, já o cortejo do outro tem na “marcha fúnebre” o compasso e a cadência do andamento. O choro e o riso, os abraços e todas as manifestações de afetos entre os que são mais ou menos próximos bem como outras reações emocionadas, estão presentes em qualquer dos eventos, onde “alguém” é o centro das atenções, a razão de ser “daquela” reunião.
Não há boda digna desse nome que não termine num “repasto” onde se “enfarda” à “fartazana”, mais que suficiente para encher a pança “até lhe chegar com o dedo”, sendo motivo de elogio ou de reprovação pelos “comensais” que “têm mais olhos que barriga”, muitos deles bem “avinhados” lá para o final do evento. Nesse aspeto, nos funerais estamos muito “atrasados” em relação a outros povos e a outras culturas, como na Bélgica, Irlanda e outros países e na África em geral. Por lá, após a despedida do finado, reúnem-se em casa da família, em restaurantes, pubs e outros locais, onde se come e bebe “à grande e à francesa”, em agradável confraternização entre todos os participantes na cerimónia, para “comemorar” e “honrar” a sua memória. Ora, por cá, não há sequer uma “bucha” para aplacar estômagos “a roncar”, nem sequer um copito de cerveja, mais na moda do que o velho “tintol”. E, sendo uma grande oportunidade de negócio absolutamente virgem entre nós, fico admirado por os organizadores de eventos, empresas de catering e restaurantes não terem ainda transformado tal prática em moda e até fazer dela um hábito. Andam a dormir “na forma”…
O fim da boda dá-se com a partida dos consortes num “caixão”, digo, carro, e com os familiares descalços e de sapatos debaixo do braço distribuindo entre si o resto dos bolos, insistindo uns com os outros para levarem mais e mais, em “clima de alegria”. Já no outro caso, o funeral termina com a “partida” do falecido quando desce à cova no caixão para, de imediato, a família se reunir e “disputar” a partilha dos “restos” (a herança), muitas vezes em “clima de guerra”, batendo-se uns com os outros para ver quem mais “abocanha” e quem agarra o melhor bocado.
Diz-se que tudo tem um fim. Mas, ao que parece, o casamento tem vários… No caso do funeral, este é o “fim”, a primeira marca que separa os mortos dos vivos. Aliás, é incrível como a morte acaba com a vida das pessoas… o que é quase sempre considerado uma tragédia até porque, a “tragédia termina com a morte”. Em contrapartida, há quem também faça do casamento uma tragédia em dois atos (civil e religioso), enquanto outros o consideram uma comédia dizendo que “toda a comédia termina em casamento”.
Enquanto a alegria caracteriza os rostos num, a tristeza é o tom geral do outro. Mas, a grande diferença entre os dois é muito importante pois, se o casamento tem “reversão” através do divórcio (há até quem diga que este começa ao mesmo tempo que o casamento ou, para ser mais preciso, o casamento talvez comece algumas semanas mais cedo…), já o funeral não tem a possibilidade de ser “revertido”, aquilo a que se poderia chamar o “divórcio da morte”. Ora, pessoalmente, não tenho medo da morte, apenas… não quero estar lá quando ela chegar.
Ah, tomei a decisão de não voltar a participar em funerais. Só vou estar no meu… porque não tenho opção.