Era uma vez uma sala de espetáculos…

Estava parado em frente do parque de viaturas dos Bombeiros de Lousada e dei comigo a recordar a sala de espetáculos que ali existiu até à construção do novo quartel, de que tenho gratas recordações, muitas delas já na penumbra da memória mas gravadas no coração.

Vi a primeira “fita” do “Charlot” encavalitado no banco de uma sala de cinema improvisada num barracão, em Macieira, mas foi naquela sala dos Bombeiros que pude assistir a muitos outros filmes, quase sempre no “galinheiro”, porque usufruía das vantagens de ser mais barato, ver o ecrã mais longe e poder comprar alguma coisa no bar da associação através de um postigo na porta que lhe dava acesso.

Ainda aluno do Colégio Eça de Queirós assisti ali ao espetáculo que a D. Palmira Meireles ensaiou e realizou com os meus colegas mais velhos, um prazer experimentado pela primeira vez.

Naquela sala também senti o medo, o medo da violência inútil, o medo dos cassetetes e das coronhas das espingardas batendo a torto e a direito no final de um comício da campanha do general Humberto Delgado, repleta de gente e com todas as saídas controladas por grande número de elementos da GNR vindos dos quartéis vizinhos. À meia noite o comandante das “tropas” deu ordem para terminarem o comício, hora limite da autorização concedida. Mas os oradores continuaram desobedecendo à ordem, talvez mesmo com algum intuito provocatório, Palavra para lá, palavra para cá e a GNR aproveitou a desobediência como motivo e começou a pancadaria. Quando me dispunha a descer do “galinheiro” para enfrentar a vertigem tresloucada dos “caceteiros”, alguém agarrou-me o braço e fez-me sair pela tal porta, na molhada dos muitos que ali estavam, passando pelo bar e sala de convívio a caminho da rua principal por escadas totalmente livres.

Outras recordações me ficaram da sala que as necessidades de crescimento da corporação fizeram desaparecer mas, a mais intensa, é a de um espetáculo de variedades em cuja organização estive envolvido. E já lá vão quase cinco décadas…

Fazia parte do conjunto “Os Moscas”, aquilo a que hoje se chamaria uma banda. Não sei mesmo se foi a primeira banda local… Habitualmente atuávamos em salas de baile da região mas decidimos levar a efeito esse espetáculo com a intenção de mobilizar “artistas” locais e fazermos algum dinheiro extra que nos ajudasse a pagar a viola Fender adquirida recentemente.

No palco, o cenário era o de um café, onde se encontravam sentados os “clientes”, isto é, os artistas, saídos das gentes de Lousada. O espetáculo começou com o empregado de mesa (o Eurico Melo) a abrir o café e a limpar as mesas, tendo sido combinado que eu entraria a seguir. Com a viola debaixo do braço entrei palco dentro e, para meu espanto, ele expulsou-me. “Rua, que isto ainda não está aberto”, ordenou. E eu saí, com cara de parvo…

Logo na primeira música cantada pelo baterista, o Zé Melo, apercebemo-nos que o som estava horrível. Como era possível se no último ensaio saiu perfeito? Só mais tarde nos apercebemos da razão: Durante o dia a eletricidade era estável mas, à noite, com o aumento do consumo, havia uma grande quebra de intensidade fazendo com que a aparelhagem de som não respondesse conveniente e não contamos com isso. No momento, sem saber da razão, mal desceu o pano de palco, o Zé Melo envolveu-se em forte discussão com o Nelo, seu primo e músico, enquanto na boca de cena o Eurico e o Alfredo Valinhas diziam umas piadas improvisadas nos bastidores. Mas, mal subia o pano, Zé e Nelo calaram-se, para recomeçar a discussão no intervalo seguinte. E foi assim até ao final do espetáculo…

No seu desempenho como empregado de mesa o Eurico chamou a atenção à pequena Teresinha, instalada numa das mesas. De pronto, ela respondeu-lhe: “Olha, o empregado parece que está chateado…”

Havia um fotógrafo em permanente atividade na boca de cena, o senhor Miguel, que nós conhecíamos pelo “Optentíssimo”. Numa das suas deambulações pelo palco na procura do melhor ângulo para a fotografia, foi recuando, recuando, recuando, sem se aperceber que ia atirar uma das colunas de som abaixo do palco. O Quim Bessa, viola baixo, prevendo o acidente, correu para a segurar e evitar a queda. Só não evitou que o cabo da viola rebentasse, obrigando-o a fingir que tocava até chegar o intervalo. É que nesse tempo não existiam cabos suplentes…

A sala foi o espaço ideal e aquele o dia para o Gilberto, o Biecas, a Teresinha, a Lúcia, o Eurico, o Alfredo, a Conceição, a Ana Maria e muitos outros brilharem, num tempo em que não existiam oportunidades para mostrar quaisquer dotes artísticos. Aquele espetáculo foi um caso raro, apesar da escassez de equipamentos, de meios, do amadorismo e do improviso em que assentou toda a sua realização. Mas ficou o prazer de ver a alegria e entusiasmo dos pequenos e grandes cantores por uma noite.

A sala de espetáculos desapareceu, sacrificada em nome do progresso e, tal como ela, também algumas das “vedetas” dessa noite, para quem se apagaram as luzes da ribalta e… da vida. Ficam as recordações desse espaço de cultura e reunião, ficam-me as memórias desses improvisados “artistas” de outrora…

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