A morte tornou-se no maior tabu da nossa sociedade. Nem sexo nem drogas se lhe comparam. Ver, ouvir ou até, simplesmente, falar dela, é algo de que fugimos “como o diabo da cruz”. Se quando eu era criança a maioria das pessoas quase sempre morria em casa, no meio das suas coisas, no seu ambiente e rodeado pela família, pouco a pouco e de forma sub-reptícia começou-se a empurrar esse fenómeno porta fora, a afastá-lo para o mais longe possível ao contrário da vivência desse tempo, de tal forma que agora a maioria das vezes a morte só acontece nos hospitais e lares ou noutras instituições, mas sempre e sempre longe de casa. Começamos por expulsá-la das nossas vidas e depois também, das nossas conversas. Deixou de ser falada, tornou-se invisível. Até deixamos de pronunciar o seu nome como se tivesse peçonha. A morte passou a ser uma estranha para nós e sempre que nos é possível, só estabelecemos algum contacto à distância de uma mensagem de condolências, de um acompanhamento afastado no cortejo fúnebre. E agora passamos a vida a evitá-la, a negá-la e a viver num “faz-de-conta” como se a morte não existisse. E a nem falar nela como se o simples falar a possa atrair. Ora, se ela é uma certeza, uma inevitabilidade, não seria muito mais racional prepararmo-nos para o momento em que nos bater à porta? Mas não é assim e o medo de a encarar com naturalidade, assusta-nos e bloqueia-nos, fazendo com que deixemos sempre tudo para depois. Ora, como é inevitável, não pode ser considerada uma derrota da pessoa e nem uma vitória da doença ou do que quer que seja que a faz acontecer. Nada disso, já que é simplesmente a vida ou o seu fim, de que faz parte integrante. Desperdiçamos tempo e vivemos como se não fôssemos morrer, nem hoje nem nunca, negando a realidade que nos vai surgir no caminho e trocando as prioridades. E mais tarde vem um “Ah, se eu soubesse o que sei hoje”? Só quando chegam algumas doenças graves, acidentes, epidemias ou pandemias como a provocada pela Covid-19 e ela nos bate à porta sem avisar nem pedir licença, como que saímos da ilusão em que vivemos de que somos mais fortes que ela, na fantasia de que a podemos fintar ou até enganar. E aí a questão não é ser ou não ser mais forte que ela, porque ela faz parte de nós e nós dela e é isso que temos de interiorizar. Se virmos bem, evitamos dizer a palavra “morrer” ou “morto”, como se as palavras tenham “lepra”. Quase sempre são substituídas por um “falecer” e “falecido”, por “finar-se” e “finado”, quando não o simples “foi-se”, “apagou-se” ou “já não está entre nós”. E para os religiosos, um “está com Deus”. O velório era em casa do morto, por mais humilde que fosse e muitas vezes não tinha um mínimo de condições, a começar pela largura das portas, quase sempre insuficientes para passar o caixão. Era preciso inventar para tirar o caixão de casa com o morto dentro, pois não se podia pedir ao falecido para se levantar, sair de casa pelo seu pé até fazerem sair o caixão de lado e sem a tampa, para voltar a “instalar-se” comodamente e de novo no seu último “fato”. Mas era a sua casa, para a vida e até para a morte. Tantas vezes ficava no “seu” quarto durante uma noite por não haver uma sala, velado pelos familiares, amigos, vizinhos e conterrâneos, que se revezavam durante a noite quase sempre aquecida com uma garrafa de bagaço. E era dali que partia para a sua última cerimónia religiosa na igreja local e depois para o cemitério. Não havia traumas por se ver o caixão e o corpo do morto. Lembro-me de José Barbosa da Mota, um homem que veio do Alto Minho para ganhar a vida entre Macieira e Aveleda, até a morte o levar. Vivia sozinho e logo que juntou algum dinheiro, comprou um caixão que colocou atrás da porta de entrada da casa humilde onde vivia, para garantir que teria um “fato” à medida. Durante anos viveu e conviveu com ele sem qualquer assombramento. Ora, também o tempo acabou por empurrar o velório para fora pois a sociedade foi criando gradualmente espaços externos para se depositar o corpo, as chamadas “capelas” ou “casas mortuárias”, evitando que ao sair do hospital ou Lar tenha de passar por sua casa e “devassar” o espaço que era seu, mas já deixou de ser, como se isso viesse a deixar algum “assombramento” em casa. E todos aderimos a este processo porque mantem o morto à distância, é mais “higiénico” dizem, dá um certo “alívio” por não ter de se viver com ele mais 24 horas seguidas, pelo menos, e torna mais leve todo este processo doloroso que é a perda e separação de um ente querido. Enquanto antigamente as crianças vivenciavam e eram inteiradas na realidade da morte, integrando na prática os rituais fúnebres a partir do funeral (e eram sempre muitas as que faziam parte das “cruzadas” e acompanhavam o morto à igreja e depois ao cemitério), hoje foram afastadas e “protegidas” para não sofrerem traumas psicológicos com consequências na sua saúde (ficando em casa agarradas ao telemóvel ou computador que as pode atrofiar bem mais que um funeral), coisa em que ninguém pensava no meu tempo de criança sempre que tive e tivemos de participar em tantos funerais mesmo quando o morto não pertencia à família. Até essa proteção e distanciamento excessivos a que as crianças hoje estão sujeitas acabam por não ser benéficas e nem sequer as ajudar a crescer. Séneca dizia que “erramos ao ver a morte à nossa frente como um acontecimento futuro, enquanto parte dela já ficou para trás, pois cada hora do nosso passado já pertence à morte”. Devemos temer menos a morte e muito mais uma vida insuficiente, inútil ou vivida pela metade. Temos de aprender a viver como deve ser, para saber morrer bem. E de perceber que a morte nos dá uma lição grandiosa: de que tudo é transitório. Porque chegamos aqui nus, ganhamos um mundo de bens, mas, ao partir, voltamos a ir sem nada, completamente nus. E, para além de tudo, seguir o conselho de Freud: “Se queres poder suportar esta vida, tens de estar pronto para aceitar a morte”. Porque se não fizermos a aceitação da morte, não seremos verdadeiramente livres nesta vida …