Há muitos anos, tantos que ainda nem existia o GPS com aplicações onde introduzimos uma morada e somos “guiados” até ela, mesmo que seja “nos confins do mundo”, tive de ir a casa de uma pessoa lá para os lados de Ermesinde, numa zona de ruas e ruelas onde não era fácil chegar ao destino sem ajuda. Às tantas vi um homem sentado à porta de casa e parei, pedindo o favor de me orientar para encontrar a morada. E ele, com pronúncia muito vincada e linguagem típica “do Porto”, foi “claro e muito objetivo ao dar-me a indicação: “Olhe meu amigo, bocê bai por esta estrada sempre em frente. Bai aparecer-lhe à mão direita uma biela e bocê cague na biela. Siga em diante e quando bir outra rua à mão esquerda, cague também nessa rua. Só depois, na rua que bem a seguir, à mão esquerda, é que bocê bao por aí e logo na primeira casa à mão direita bai ber o Miro”. E foi tão “claro e direto” que fiz tudo aquilo que ele me mandou fazer, desde o “cagar na biela à mão direita”, “cagar na rua à mão esquerda” e “entrar” na outra rua à mão esquerda para ir ter direitinho à porta do Miro sem pedir mais informações a ninguém. Para cumprir todas as indicações que aquele homem havia dado tão simpaticamente, tive de “cagar” na “biela” e na rua como ele me indicou, sem ter de levar à letra o sentido literal da palavra, mas somente a sua “tradução” para a linguagem comum, que queria dizer “para as ignorar e ir em frente”.
A forma de falar na região do Porto, para além duma fonética própria como a pronúncia acentuada do “ão” como “morcom” ou “ladrom”, o trocar o “v” pelo “b” como é o caso do “vai” pelo “bai” ou do “vir” pelo “bir”, além de outras, tem ainda como característica a incorporação de algumas expressões e palavras em calão e ainda as do chamado “baixo calão”. E nós aqui no Vale do Sousa, embora não tenhamos a pronúncia tão cerrada e própria de algumas zonas da cidade do Porto e arredores, acusamos uma forte influência, muito especialmente nas expressões e no calão que usamos com frequência.
O acesso generalizado da população à escola nos dias de hoje poderia fazer crer que o calão e algumas expressões mais brejeiras tenderiam a ter um uso muito diminuto, mas não me parece que seja o caso. Por isso, hoje como ontem, ouvimos muita gente com a língua “solta”, sem peias nem preconceitos, com toda a naturalidade, falar naquilo que é uso dizer-se, “português vernáculo”. E se o uso do calão pode ter uma carga ofensiva ao ser usado como “arma de arremesso” para agredir alguém verbalmente, na maior parte das vezes são só “palavras como as outras”, estranhas para quem não é de cá, mas que saem boca fora inocentemente sem qualquer intenção de ofender, sem complexos nem sentimentos de culpa, até com sentido elogioso. Ao conhecer as notas do filho na Secundária, uma mãe disse-lhe orgulhosa: “Saíste-me cá um filho da p. bem mais inteligente do que eu …”.
Tenho uma tia que sempre usou no seu vocabulário esses “palavrões” regionais, mas com uma pequena diferença, subtil. “Oh meu filho da curta” ou “vai-te cozer”, eram duas das expressões onde “torneava” a rudeza do calão que considerava “impróprio” para uma mulher, mas não deixava de o utilizar na sua versão “adoçada” pela simples troca de uma ou duas letras.
Para além do calão “puro e duro”, existem expressões de há muito tempo, vocábulos populares e gíria urbana de uso corrente na região.
Algumas são até criativas como “mandei-lhe uma traulitada direta à caixa dos fusíveis” que o mesmo é dizer “dei um murro nas ventas”, “na caixa dos pirolitos”, “no focinho”, ou seja, na cabeça. Já quando alguém morre, dizem “foi fazer tijolo”, “deixou de fumar”, “secou-lhe o céu da boca”, “bateu a caçoleta”, “bateu a bota”, “esticou o pernil”, “foi para o Jardim das Tabuletas”, “foi desta para melhor”, “deu o peido mestre” e muitos outros. A verdade é que, se não estivermos dentro da gíria, podemos ouvir a conversa e ficar “como um burro a olhar para o palácio” porque não entendemos patavina, algo como quando os jovens falam na gíria atual e me deixam “sem perceber a ponta dum corno”.
Ele entrou no “boteco” pela “porta do cavalo” quando já “não podia com uma gata pelo rabo” e “sem saber de que terra era”, até porque apanhara a “bezaina” ao “correr as capelinhas”. De “chuço” na mão, parecia “um gato pingado” a fazer “conversa de chacha” quando “deu de trombas” com o João. “Estás com’ó aço”, disse-lhe ele, “e com cara de quem vai chamar pelo Gregório”. “Bai-me à loja”… e então o João “lá bazou”, enquanto ele “birava o barco”. Mas logo a seguir já “tava a bombar” e a “mandar bitaites”. Quando passou uma amiga atirou-lhe: “Vais toda lampeira”, mas ela “estava com o toco” e respondeu: “Bai bergar a mola, morcom”. Ora, quando somos apanhados no meio de diálogos deste tipo, podemos ter alguma dificuldade em acompanhar e compreender o “filme” completo, porque nem sempre dominamos todas as expressões.
Há dias, o filho de um amigo hesitava em tomar uma decisão. O pai, já farto de esperar, às tantas explodiu: “Assim, nem o pai morre nem a gente almoça”. Não conhecia a expressão e lembrei-me de um outro momento em que ele se decidiu pela compra de um determinado modelo de carro. Quando o tentaram dissuadir, foi perentório: “Nem que a vaca tussa”. Se fosse a minha tia, no seu calão “adoçado”, diria: “Nem que te … cozas”.
Para “não borrar mais a pintura” e “não confundir a estrada da Beira com a beira da estrada” nem “o olho do cu com a feira de Montemor” ou “a obra prima do mestre com a prima do mestre de obra”, “vou dar de frosques” e “corda nos sapatos”, munido “de armas e bagagens”, pois tudo o que eu possa dizer “não adianta um grosso” …