As palavras que valem sorrisos…

Durante a noite e sempre que a Luísa está a dormir, costumo entrar e sair do quarto com a luz apagada por respeito ao seu descanso. Ao fim de tantos anos conheço a casa de olhos fechados e mexo-me bem e sem fazer ruído… desde que alguma coisa não corra mal. É que, às vezes, o sono atrapalha. Numa dessas noites em que a cabeça pesava mais que a vontade, levantei-me às escuras e, como habitualmente, não acendi a luz. E aconteceu. Ao contornar a cama, não calculei bem o lugar onde se encontrava a cadeira e dei-lhe um pontapé, fazendo um barulho tal, que até os vizinhos devem ter acordado. Mantive-me estático por uns segundos na espectativa de não a despertar mas, com a cabeça enfiada debaixo dos lençóis, teve discernimento para perguntar: “Não te estás a entender com a mobília”? No silêncio do quarto, tive de conter o riso para não a despertar mais…

Foi à quase nove anos que a Luísa sofreu dois AVCs e, desde aí, vive no limbo, quase sempre fora da realidade, entre a cama e a cadeira de rodas. Mas há momentos assim, em que sai do mutismo onde vive refugiada e faz uma pergunta que tem tanto de humor como de inesperada. Era assim a Luísa no seu melhor , subtil e assertiva… Na televisão passava um filme em que o protagonista principal andava à procura de uma mulher desaparecida. Como eu não estava a prestar atenção ao programa, ao olhar por acaso uma cena em que o ator entrou numa casa de banho, perguntei à Luísa: “O que é que ele vai fazer agora”? A resposta foi imediata: “Vai-se enfiar de cabeça na sanita”…

A maior parte do tempo em que está acordada, fica na sala, em regra concentrada na televisão, parecendo acompanhar tudo o que esta transmite. Porém, se lhe perguntar qual é o programa ou o filme que está a passar, encolhe os ombros em sinal de que não sabe. A sua memória de curto prazo “foi-se” porque o “gravador” deixou de gravar novas informações. Mantem o ar de ausência, como que numa apatia a tudo o que a envolve mas, muitas vezes, está com o olho na tv e o ouvido na conversa do lado, o que lhe permite introduzir comentários com graça.

No final de um almoço de família algumas das irmãs dela ficaram à conversa, a trocar impressões sobre receitas de bacalhau e durante uma boa parte da tarde. Já cansada de as ouvir falar de receitas e comida, às tantas a Luísa perguntou-lhes: “Vocês ainda não comeram, pois não”? Tal como naquela conversa, cá em casa eu comentava a notícia de que os russos tinham despenalizado a violência doméstica. Dizia então que “agora, na Rússia, nódoas negras e arranhões na vida doméstica, já não são crime”. E a Luísa, que estava à margem da conversa, “tirou logo da manga” uma das suas tiradas e meteu a colherada: “Então o que são? Medalhas?”

Só reconhece as pessoas que conhecia antes da doença se manifestar mas há ocasiões, como aconteceu ontem à noite, em que a confusão na sua cabeça deve ser muito grande, ao ponto de me perguntar: “Onde está o meu marido”?

Na televisão, um treinador de futsal gesticulava e gritava com os seus jogadores, incentivando-os a fazerem mais e melhor pois as coisas não estavam a correr bem à equipa. Depois de o observar naquele misto de azáfama e histerismo, virou-se para mim e perguntou-me: “Aquele é o treinador? Se ele acha que não estão a jogar bem, porque não vai ele lá para dentro fazer melhor”?

Pergunta-me pelos filhos várias vezes ao dia, quase sempre a querer saber porque não estão em casa ou porque não vieram dormir como se ainda fossem solteiros e vivessem cá. E, sempre que pergunta, relembro-lhe onde cada um agora se encontra. Numa dessas explicações, quando ia falar do José Miguel que nesse preciso momento viajava de avião, pus-me em pé, abri os braços e agitei-os para baixo e para cima. Ao ver-me naquela posição, perguntou: “O que estás a fazer”? “A tentar levantar voo”, respondi na brincadeira. Porém, ela desarmou-me num instante: “Mas voltas amanhã, não”?

Ainda foi há poucos dias que ocorreu a alteração da hora Apesar de saber que a Luísa esqueceria de imediato o que lhe dissesse, naquela noite de final de Março não deixei de a informar do que iria acontecer a meio da noite: “Sabes, hoje muda a hora”. E ela, apesar de parecer ausente, perguntou-me: “E muda para onde”? Ri-me mas continuei a falar com ela e com outra pessoa que estava connosco. No meio da conversa voltei a repetir “a hora muda hoje”. Meia distraída e dando a entender que não estava a participar na conversa, lá foi dizendo: “Não, não, a hora não muda. As pessoas é que a mudam”… E tive de me calar.

Repetem-se os dias e os ritmos e com estes os rituais de cada dia, no cuidar, nos medicamentos, no levanta/deita, no cama/cadeira de rodas/cama, nas refeições e cuidados de higiene e saúde, como se cada dia fosse igual ao anterior e ao que vem a seguir. E a verdade é que, na sua presença com ausência, a sua não percepção da realidade acaba por jogar a seu (e a nosso) favor, pois não tem consciência das suas limitações nem do seu estado, o que tem evitado depressões e outras consequências. E as gargalhadas ocasionais e os ditos com humor, acabam por ser um prémio e uma bênção que ajudam a suportar a dureza da caminhada…

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