Estava a separar algumas peças de roupa quando me lembrei do que aconteceu à minha mãe: Preocupada com a situação de pobreza de uma família que morava mesmo ao lado de sua casa, juntou algumas roupas e foi lá entrega-las, tendo um certo cuidado prévio com elas. Quando ao outro dia foi depositar o lixo no contentor encontrou no fundo tudo o que havia oferecido…
Este acontecimento não me é estranho tal como o não é para muita gente que muitas vezes não sabe o que fazer à roupa usada, por dificuldade em encontrar quem precise e queira (são precisas as duas condições). E, muitas vezes, acabam por ser aproveitadas por pessoas que nem são necessitadas mas que não têm preconceitos nem vaidades estúpidas, sinais crónicos de uma pobreza bem maior.
Quando eu não estava na escola primária, usufruía da natureza em pleno, aproveitando os seus tempos e os seus ciclos fossem eles da fruta, dos ninhos, da pesca ou dos banhos no rio Sousa. A roupa é que pagava a fatura, sendo frequente um rasgão nas calças ou na camisola conseguido ao subir a um pinheiro (melhor, ao descer), ao saltar uma vedação ou a jogar à bola. E, como só tinha um ou dois pares de calças, a minha mãe punha-lhe um remendo e continuavam a ser usadas no mesmo dia. Mas havia quem nem remendos pudesse pôr, pelo que tinha de andar com elas rotas.
Num bonito dia de Páscoa “estriei” um fato, nos meus dezasseis anos acabados de fazer. Sim, porque só se “estriava” roupa na Páscoa ou no Natal e não era todos os anos. De tarde, depois de recebermos o “compasso”, aproveitei a boa vontade do meu irmão António e fui dar uma volta na sua motorizada, partindo sem rumo definido pois o que interessava era gozar tal privilégio. O acaso levou-me de Lousada a Freamunde e Paços de Ferreira até que, numa curva com areia na saída para Santo Tirso, derrapei e fui parar ao chão por “aselhice”, acabando ferido no joelho, ferido no orgulho e com um rasgão nas calças do fato acabado de “estriar”. E agora?
Voltei logo para casa com “o rabinho entre as pernas” mas recebi a compreensão da minha mãe. Ao contemplar aquele rasgão em L no joelho das calças, ficamos a conversar sobre a melhor forma de as remendar com o mínimo de visibilidade, pois um remendo vulgar ficaria mal no fato. Como nesse tempo a regra era comprar primeiro o tecido e mandar fazer o fato ao alfaiate, “por medida” (ainda não se inventara o pronto a vestir), as sobras de tecido eram guardadas para eventualidades como aquela. Daí que, quando a mãe tirou de uma gaveta alguns pedaços de tecido igual, procurei um que fosse maior que o rasgão e coloquei-o sobre este, enquanto dava voltas à cabeça como havia de resolver o problema sem deixar “rasto”. Reparei que o tecido era feito com os fios cruzados na perpendicular de forma muito vincada e então ocorreu-me uma ideia que quis logo pôr em prática. Com o acordo da mãe, do bocado de tecido que escolhera cortei um quadrado cerca de dez centímetros maior do que os limites máximos do rasgão. Depois, centrei e fixei esse quadrado de pano sobre o buraco das calças e, dos lados esquerdo e direito, fui retirando os fios verticais, um a um, deixando somente os horizontais até ficarem com oito centímetros, de um lado e do outro. Fiz o mesmo na parte de cima e de baixo do quadrado, retirando aí os fios horizontais, deixando os verticais também com oito centímetros. Com isso, fiquei com um quadrado de tecido central suficiente para tapar o rasgão, que mantive fixo sobre este com alfinetes, e com fios do próprio tecido para cima, para baixo e para os dois lados. A partir daí, foi só uma questão de paciência. Com a ajuda de uma agulha, enfiei uma ponta de fio nesta e entrelacei-o no tecido das calças a partir do quadrado intacto do remendo, seguindo as linhas dos fios do tecido nos quatro lados do quadrado, fazendo desaparecer o rasgão por completo e sem que se notasse o remendo. Minto, se virasse as calças ao contrário, pelo interior “via-se o acidente”. Acabara de “cerzir” umas calças… Mais tarde vim a descobrir que, afinal, já havia quem se dedicasse a tal trabalho, pelo que, afinal, “inventei” algo que já estava inventado…
Nesses tempos difíceis, o importante era ter alguma coisa para vestir, velho ou novo, remendado ou não, porque não nos podíamos dar ao luxo de rejeitar roupa. Lembro-me que, nos dias de chuva, era com um saco de serapilheira grossa virado para dentro de um dos lados que se improvisava uma capa de proteção. E nem todos tinham um saco…
Com a industrialização, criou-se e distribuiu-se riqueza que permitiu o acesso generalizado aos bens de consumo, nomeadamente à roupa. E, à medida que nos fomos consolidando como sociedade de consumo, a indústria, através do marketing (apoiado na “ditadura da moda”) e com a ajuda do crédito fácil, tornou-nos consumidores desenfreados e obsessivos, de tal forma que já não se sabe onde guardar tantos “trapos”. E, mesmo assim, ainda há quem olhe para os roupeiros cheios em casa e tenha o “desplante” de se lamentar dizendo que “não tenho nada para vestir”…
Apesar da crise ter obrigado a inverter a mentalidade sobre roupa já usada por outros, ainda existe gente necessitada que a recusa, tal como o vizinho da minha mãe, talvez com o receio de apanhar alguma “doença contagiosa” ou “ter de a despir na praça pública”. Serão preconceitos, vergonha ou complexos? Não concebo tal… Diz o povo que “quem tem vergonha passa mal”. A meu ver, o problema é do seu estado de apresentação. É que, estando impecável e sem rasgões, … está desatualizada. Para ser aceitável, as calças devem estar… rotas. O que antes era sinal de pobreza, agora virou… moda. Como as coisas mudam!!!
Há quem precise mas, “empinam” a cabeça e dizem com desdém: “Eu, aceitar roupa usada”? Desses, diz-se que “têm barriga de pobre, mas boca de rico”…