E carnaval, ninguém leva a mal…

Quando era criança “corria-se o Entrudo” e a recordação mais distante que tenho disso é a de uma mulher vestida de magala com uma meia enfiada na cabeça para não ser reconhecida. Ah, e atirava-se com água e farinha a quem passava. Outra recordação é a ementa tradicional da “terça-feira gorda” em casa dos meus pais, o último dia sem as restrições alimentares da Quaresma: Cozido à portuguesa com orelheira. O Carnaval veio depois, substituindo gradualmente o Entrudo, sendo um cortejo de carros alegóricos no Porto a primeira manifestação a que assisti como tal. Mas foi já como adolescente que o passei a valorizar mais, pela possibilidade de ir a algum bailarico apesar de ser só por convite.

Já andava a estudar em Coimbra quando me comecei a corresponder com uma moça de Espinho – no tempo em que se escreviam cartas, muitas cartas, praticamente o único meio das pessoas se comunicarem já que o telefone ainda não era acessível. Conheci-a através da Flama, uma revista que estava em voga e que publicava gratuitamente esse tipo de anúncios, tendo-a selecionado entre as cinco que me escreveram, sendo uma delas espanhola. Esta, para aumentar o meu interesse em responder-lhe (e nesse tempo Espanha era muito longe…), enviou-me um poema de que nunca esqueci a primeira quadra (não sei se a escrita está correta, porque o meu espanhol não é tão bom como o dela):

“Dicen que la distancia es olvido, pero existe essa distancia quiçá? No estan tu pueblo e el mio unidos, por el suelo, por el cielo e por el mar?”

Quanto à espinhense, depois de meia dúzia de cartas para lá e outras tantas para cá, convidou-me para ir ao baile de Carnaval num clube lá da terra e aceitei, pois era a forma de a conhecer ao vivo (e a cores) e de me divertir (esperava eu).

Vestido com fato azul escuro, camisa branca e gravata, lá fui eu apanhar a camioneta da Pacense para o Porto e dali o comboio até Espinho, ficando a estação muito próxima do tal clube. A camioneta ia quase vazia e sentei-me do lado esquerdo num banco junto à janela. Do lado direito, também à janela, ia um fulano qualquer com a cara espetada no vidro, sem nunca se virar.

Distraído nos meus pensamentos já ia a meio caminho da viagem quando senti uma espécie de “chuveirada” a cair-me em cima, sem me aperceber de imediato de onde vinha. Olhei para a roupa e vi-me coberto de sopas de vinho tinto espalhadas pelo fato. Foi então que reparei no ar apatetado do fulano que ia no lado contrário, ainda a vomitar, “bêbado como um cacho”. Estava lindo para ir ao baile…

Que fazer? A camioneta continuava em frente e não me ia levar a Lousada para trocar de roupa. Também não valia a pena chorar nem gritar com o bêbado, não adiantava nada. Enquanto a camioneta continuava em direção ao Porto, pus-me em pé no meio do corredor e sacudi os bocados de broa espalhados pelo fato, passando-lhe o lenço para tirar as migalhas mais agarradas.

Quando saí na garagem da Pacense, fui à casa de banho e olhei-me ao espelho. Para minha surpresa, no azul escuro do fato não havia sinais do “acidente”, só se notando uma pequena pinta de vinho tinto no colarinho branco da camisa, que reduzi ao passar-lhe o lenço molhado. Mais animado, fui para o bailarico curioso de conhecer quem me esperava.

Descobri o clube, comprei bilhete e entrei. O baile realizava-se num grande salão que tinha a toda a volta duas fiadas de mesas onde estavam as meninas… e os pais. A primeira dificuldade foi descobri-la pois só a conhecia de fotografia, mas consegui. Encontrava-se numa mesa junto à parede, tendo outra à frente. Depois, foi ganhar coragem para convidá-la, num baile cheio de formalismos e de… pais. Mas fui em frente.

Esperei que me visse e, com a outra mesa pela frente, a partir da pista de dança fiz a vénia da praxe em sinal de convite. Ela levantou-se mas, para meu espanto, em simultâneo pôs-se em pé uma mulher muito gorda que estava na mesa da primeira linha que se agarrou de imediato a mim… E agora? Que raio me havia de acontecer!!! Foi precisa alguma paciência e calma para me livrar dessa situação embaraçosa, já com o meu par à espera das apresentações… Bom, para satisfazer eventuais curiosos, não foi “chão que desse uvas”…

Gradualmente, o Carnaval foi-se afirmando como momento de folia e foliões, com forte influência de brasileiros mas muito mais do “agitar de bundas” brasileiras, oportunidade crescente de atividade turística e comercial ao ponto de quase se ter institucionalizado umas mini férias de que milhares e milhares de portugueses têm usufruído, com ou sem tolerância de ponto de governos e câmaras municipais.

Com a crise e sem ela, tal como com e sem austeridade, os detentores do poder e os candidatos a substitui-los descobrem sistematicamente nesta altura que o Carnaval calha numa… terça-feira. E vai daí, esgrimem-no entre si como arma de arremesso político, concedendo ou não tolerância de ponto aos funcionários públicos, mais parecendo uma corrida à “caça ao voto” do que uma posição com “sentido de estado” como se impunha. E este ano não foi exceção. Mas o melhor veio da Madeira, onde haverá não um, não dois, mas dois dias e meio dias de tolerância. Bravo, grande Alberto João em dia de despedida… Acho no entanto que, em vez de dois e meio devia dar sete e meio… É que, tal como no sete e meio (jogo de cartas), a aposta é simples e pode ganhar-se a dobrar. O que não é de desprezar quando se é sempre candidato a qualquer coisa…

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