A lição, num jogo de matraquilhos…

A humildade exprime a rara certeza de que ninguém é superior a ninguém. O pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas e o muito conhecimento faz com que se sintam humildes. Por coincidência, ou não, é assim que as espigas sem grão erguem a cabeça para o céu, enquanto que as cheias a baixam para a terra.

Devemos curvar-nos perante alguém? Claro que sim. Perante os grandes? Nem pensar. Somente perante os humildes no coração.

Ao longo da minha jornada conheci a humildade, aquela que vem de dentro, genuinamente, quase sempre em gente simples. Mas também encontrei a altivez, na atitude de quem se julga superior e age com presunção e arrogância, subestimando os outros, a quem dedica somente olhares de desdém.

Um dia, depois de jantarmos, reunimos um pequeno grupo de recém chegados à Escola Agrícola e fomos ao café do senhor Álvaro, em S. Martinho do Bispo, ali mesmo ao lado. Tinha chegado a Coimbra há pouco mais de duas semanas e, sendo caloiro, provinciano e tímido, não me arriscava a sair sozinho.

Lá chegados, espalhamo-nos pelo café, tendo eu ido parar junto de uma mesa de matraquilhos onde o jogo estava animado e com muitos espectadores. Um dos jogadores, grande e peludo, de camisa aberta e olhar arrogante, exibia-se como a “estrela” local. Depois de ganhar alguns jogos seguidos, a dupla derrotada deu lugar a outra, que também perdeu, e esta deu lugar a uma terceira que também viria a ser “cilindrada” pela “estrela” de serviço e pelo seu parceiro, continuando a exibir-se como um pavão armado.

Eliminada a terceira equipa e como mais ninguém se perfilava para jogar contra os vencedores, o homem grande questionou o público: – “Então não há mais candidatos a levar uma abada?” E voltou a repetir o desafio, olhando com sobranceria o público à sua volta, carregando as palavras de intenção.

Perante a insistência, o Fausto, o meu colega de turma que viera de Lamego, perguntou-me baixinho: “Jogas alguma coisa disto?” – “Eu? Joguei algumas vezes, mas pouco” respondi-lhe em surdina, com receio de ser ouvido. Para minha surpresa, chegou-se à frente e disse timidamente: “Jogamos nós”.

O Fausto pôs-me à defesa e ficou na frente. “Aí vamos nós”, pensei comigo. O grandalhão, que também jogava no ataque, pegou numa bola e, antes de a lançar, disse ao parceiro com um sorriso cínico: “Vamos lá depenar estes patos”. E lançou a bola…

O Fausto apanhou-a, prendeu-a com os médios, passou-a para os avançados dominando-a e, com uma velocidade estonteante, fez finta e marcou golo. Fiquei de boca aberta. O grandalhão, de sorriso amarelo, lançou a segunda bola e a cena repetiu-se com uma finta diferente mas igualmente rápida. E foi golo. Num ápice chegamos aos dez a zero, o total das bolas da mesa de matraquilhos. O homem grande perdeu o sorriso e até eu, que pouco trabalho tivera, estava mudo de espanto porque nunca vira ninguém jogar assim. O Fausto permanecia tranquilo, discreto.

O nosso adversário perdeu o ar “fanfarrão” mas, não querendo dar-se por vencido, aceitou outro jogo, já bem menos confiante, tendo sido novamente derrotado por dez a zero. Estava com cara de incrédulo, como não querendo acreditar no que lhe estava a acontecer. Numa manifestação do orgulho ferido, arriscou um terceiro desafio e foi batido mais uma vez pelos mesmos números, acabando por desistir sem honra nem glória, perdendo o sorriso e a altivez, absolutamente humilhado à frente do “seu” público até porque humilhação não é só levar um pontapé, mas merecê-lo.

Ao subestimar a capacidade alheia e não ter em conta as nossas potencialidades (para ser mais correto, as do Fausto), cavara a sua própria sepultura. E na sua arrogância, que o levou a acreditar que era superior a todos os outros, mais parecia um balão insuflado que, à primeira picadela (e que picadela) esvaziou-se e desapareceu.

Por uma questão de sanidade mental, penso que todos nós devíamos ser humilhados pelo menos uma vez na vida para a arrogância dar lugar à maturidade e aprendermos que aquela é algo de que nos devemos despir dado que conduz à queda.

Curiosamente, nos dias seguintes, o nosso adversário aproximou-se de nós já com um espírito bem diferente daquele com que se apresentou quando o conhecemos, tendo deixado cair a máscara da superioridade para dar lugar à disponibilidade para aprender. E o Fausto, o perito na matéria, dispôs-se com humildade e paciência a dar-lhe algumas lições…

Ao recordar esta pequena história, hoje e à distância de muitos anos, não posso deixar de pensar que quando estivermos a subir, seja na importância do cargo que ocupamos, nos bens que possuímos ou noutra coisa qualquer, não nos devemos esquecer de ser humildes com as pessoas com que nos cruzamos porque, no sobe e desce da vida, podemos encontrar-nos com elas ao descer…

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