No baú das recordações tenho um cantinho especial dedicado ao Natal. Lá longe, tão longe que às vezes já nem sei se foi sonho ou realidade, vejo-me em casa da minha avó materna, sentado no preguiceiro com os pés em cima do lar onde a acendera uma grande fogueira. Enquanto eu, os meus irmãos e os meus primos jogávamos ao “rapa” a pinhões (tal como os apanhávamos de um enorme pinheiro manso que havia na mata dos Morgadinhos), ela ia fazendo a aletria, os formigos e as rabanadas – não as fritas de hoje mas as de mel, feitas com pão de cacete, demolhadas em água com açúcar e canela a ferver, colocadas numa travessa e regadas com esse precioso alimento. Para tudo isso, usava uma grande panela de três pés e dois tachos que tinha em cima duma “trempe”. Era naquela fogueira que depois cozia as batatas com bacalhau para a Ceia, onde juntava todos, filhos e netos.
Depois da Ceia, ficávamos por ali a jogar ao rapa enquanto os mais velhos jogavam às cartas até perto da meia noite, hora de ir para a Missa do Galo.
O Menino Jesus é que “trazia” as prendas, quase sempre umas luvas ou uma camisola tricotadas à mão pela minha mãe, com lã comprada em meadas na Casa Valinhas e que eu ajudava a “dobar”, e um guarda chuva de chocolate, e nunca ouvi falar em árvore nem em pai natal. Era um Natal vivido em pleno no seio da família, à volta da mesa, da lareira e do quintal.
Ano após ano essa noite foi-se repetindo e renovando com a mesma tradição, com o mesmo espírito de celebração do nascimento do Deus Menino, com o sentimento particular da sua importância.
De mais ou menos longe, regressava sempre a casa, para o “colo” dos meus nesse dia tão especial, a que só faltei quando estive no serviço militar em África. Mas, à medida que a economia crescia e com ela a sociedade de consumo, o Natal foi pouco a pouco sendo visto como uma oportunidade de incremento da atividade comercial pelo que, a indústria, a publicidade e o marketing venderam-nos a árvore de natal, iluminações variadas, as prendas, o pai natal e as renas e até o papel de embrulho, sempre com o objetivo de… consumirmos.
A industrialização provocou divisões nas famílias ao fazer deslocar alguns dos seus membros para mais longe, longe esse muitas vezes para lá das fronteiras, tornando mais difícil essa reunião natalícia. Mas, com todas as vicissitudes, as dificuldades e os aproveitamentos, o Natal manteve-se como um momento único, celebrado por crentes e não crentes, novos e velhos, nos quatro cantos do mundo.
Nessas transformações, vieram as dificuldades de muitos católicos em lidar com a quebra de tradições a troco de símbolos do consumismo, da sua comercialização, do esquecimento do essencial do Natal e da sua mensagem, apesar de continuar a ser motivo para interromper guerras, suspender ódios, gerar ondas de solidariedade, lembrar os indigentes. Nem sempre foi fácil aceitar ou explicar tais mudanças. Dizia-me à pouco uma mãe colombiana que estava com um problema para explicar à filha quem lhe “trazia” as prendas de Natal. Na tradição colombiana, ainda continua a ser ao Menino Jesus que as crianças dirigem os seus pedidos mas, a penetração publicitária do pai natal, começa a fazer sentir-se. Perante as perguntas da filha, adoptou uma atitude mista, religiosa e profana, dizendo-lhe que é e sempre foi o Menino Jesus. E quando ela lhe perguntou “E o pai natal?” respondeu-lhe que ele é um empregado do Menino Jesus, cabendo-lhe fazer as entregas…
As alterações às tradições natalícias também trouxeram os cartões de boas festas, os telefonemas e, agora, as mensagens, institucionais ou pessoais, mais ou menos elaboradas, de que recebi umas quantas de gente que me é querida. De todas elas, há uma que me foi enviada pelo meu primo Nuno e que não posso deixar de partilhar quase na totalidade, pela forma e pelo conteúdo (ele que me perdoe por fazê-lo sem a sua autorização).
Diz o seguinte:
“Sabem, é Natal em 2013…
Mais um para alguns,…
Menos um para outros, esses outros a quem a sorte é madrasta: os sem abrigo, os indigentes, e todos aqueles a quem a roda da fortuna não sorriu.
É a vida que temos, na sua crueza, feita de opostos e contradições.
Mas sabem, nunca como hoje e por mais anos que se escoem na minha vida, a memória do meu Natal é tão presente. Aquela do presépio humilde (sem árvore nem pai natal, esses símbolos do consumismo hodierno…) presentes simples, alegria do encontro da família, a partilha, a celebração do Menino Deus logo na Missa do Galo… Sim, porque esse era O aniversariante.
Sem nos darmos conta fomos deslocando o Natal para o que menos interessa: o nosso conforto, o nosso interesse, o nosso egoísmo. Passamos a ser nós os aniversariantes e esquecemo-nos uns dos outros…
Ora, não há Natal sem o outro, sem a partilha, sem a solidariedade, sem a entrega e com condição. Quando o fazemos, egoisticamente, esquecemos o Menino Deus, abandonámo-lo e fingimos.
Nasceu pobre entre os mais pobres, em família modesta, numa manjedoira (esqueçamos o burro ou a vaca que tanta tinta motivou…), Ele que é filho de Deus, feito homem. Trouxe-nos esperança. O Natal é Dele. E sendo Dele, será sempre o meu Natal, como já era dos meus pais, dos meus avós, etc..”
Obrigado Nuno, por me recordares o “Meu Natal”…