Morra agora e pague depois …

Num mundo perfeito, todos nós teríamos o direito e condições para ter tudo. Mas desse mundo ideal, só nos ficou o direito, faltando-nos o melhor: as condições. Eu tenho o direito de ter uma casa nas Caraíbas bem junto à praia, de viajar pelo mundo e conhecer todos os lugares maravilhosos de que ouço falar e vejo imagens, mas faltam-me as tais condições, neste caso económicas, para usufruir do meu direito. Sem “aquilo com que se compram os melões”, não há (quase) nada para ninguém. Se isso era válido para a minha geração em que “quem não tinha dinheiro não tinha vícios”, para as novas gerações, a indústria, comércio, serviços e banca inventaram algo que proporciona a toda a gente, ou quase, as condições para usufruir de (quase) tudo: o crédito fácil. E o crédito fácil passou a ser uma oportunidade para pessoas e famílias, anteciparem a aquisição dos bens ou serviços que podem melhorar-lhes o seu bem-estar, como o é a compra de habitação, de viaturas, equipamentos para o lar ou até viagens.

Mas a dívida é uma droga tão potente como o álcool e a nicotina. Em tempos de prosperidade os consumidores usaram-na para melhorar os seus estilos de vida, as empresas pediram dinheiro emprestado para expandir os seus negócios e os investidores recorreram à dívida para melhorar os seus rendimentos.  Enquanto a minha geração aprendeu a viver só com o que tinha, economizar e poupar, as seguintes, com o crédito fácil, o regime de que (quase) tudo se vende a prestações e com a adoção mais alargada dos cartões de crédito, criaram uma sociedade do “compre já e pague depois”. Se é que se pode pagar, o que nem é um grande problema pois o não pagamento tornou-se uma mera opção de estilo de vida e a culpa quase se tornou do financiador descuidado e não do cliente imprudente. Só que, em épocas de crise como a que vivemos em 2008, pela falta de rendimentos que deixaram de poder cobrir as despesas, muitos devedores tiveram de entregar casas, carros e outro património aos bancos, num regresso à realidade nua e crua de uma máxima bem conhecida: quando a despesa anual é superior à receita, o resultado é a desgraça. Foram cerca de 10 anos difíceis em que até fomos chamados a pagar para salvar os bancos. E não foi nada pequena a fatura … 

Mas não se aprendeu nada com isso, na permanente máxima de que os países e as empresas têm de crescer mais e mais, sendo que para isso é preciso consumirmos mais e mais e, consequentemente, será preciso mais e mais crédito, mais e mais dívida. E cá estamos outra vez, agora com a máxima a dizer o contrário: quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade … 

No século XIX, quem não cumprisse as suas dívidas era preso, mas, nos dias de hoje, já ninguém vai preso por dever. Pelo contrário, até dá estatuto: quanto mais se deve, maior se é. E ninguém quer saber se a “bomba” em que andas montado é tua ou de uma instituição de crédito. O que importa é “parecer” aos olhos dos que nos rodeiam.                                                                                                   Embora o crédito seja uma vantagem para as famílias, pode ter vários riscos. Despesas cada vez mais sobrepostas aos rendimentos, criam margens financeiras curtas às famílias para juntar gastos ocasionais ou inesperados e suportar possíveis perdas de rendimento. Além disso, hoje existe um novo perigo: é vulgar vermos campanhas que prometem “crédito fácil e pré-aprovado” ou ofertas de aumento do limite do cartão de crédito. Mas estas propostas, muitas vezes estão associadas a juros muito altos que podem levar a um elevado nível de endividamento, a pagamentos atrasados, a penalidades, a impactos negativos no histórico de crédito e risco de perder bens ou garantias, para além da habituação e dependência do crédito. Acreditar mesmo que existe crédito fácil, é “acreditar no Pai Natal”. O acesso pode ser fácil, mas implica necessariamente taxas de juro mais elevadas. É intuitivo perceber que quanto maior o risco de um crédito, maior terá de ser a taxa de juro associada a tal crédito. O assédio do crédito fácil é comum em todas as épocas, mas especialmente no Natal. Tudo são facilidades e as pessoas são induzidas ao consumo, podendo ou não, com créditos que são fáceis de contratar, mas difíceis ou impossíveis de pagar. E perante as (aparentes) facilidades, fazem-se as compras do que não é necessário, por impulso. E isso contribui para que a dívida das famílias portuguesas esteja perto dos 160 mil milhões de euros, o que significa que cada português tem à partida 17.000€ em dívidas. Já alguém reparou, ou andamos distraídos, nas inúmeras pessoas que têm o salário penhorado? Porquê? Porque “quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade” … 

Mas há sempre uma saída para o sobre-endividamento porque, como diz o povo, “ou há moralidade ou comem todos”. Se um Joe Berardo e um Luís Filipe Vieira ficaram a dever muitos milhões aos bancos e não se passou nada, também o cidadão comum que, ao lado destes “tubarões” não é nada, tem uma escapatória por onde pode sair da lista de devedores: pedir a declaração de “insolvência pessoal” junto do tribunal com a ajuda de um advogado. E, ao fim de três anos, o “insolvente” será libertado definitivamente das dívidas que ficaram por saldar, com exceção de algumas. Nada mau. Mas, se nada disto resultar, há sempre uma última saída: “Morra agora e pague depois”! E há muito devedor que consegue viver bem com isso e, quando morrer, resolve a questão com um “Deus lhe pague” …