Monthly Archives: March 2025

Morra agora e pague depois …

Num mundo perfeito, todos nós teríamos o direito e condições para ter tudo. Mas desse mundo ideal, só nos ficou o direito, faltando-nos o melhor: as condições. Eu tenho o direito de ter uma casa nas Caraíbas bem junto à praia, de viajar pelo mundo e conhecer todos os lugares maravilhosos de que ouço falar e vejo imagens, mas faltam-me as tais condições, neste caso económicas, para usufruir do meu direito. Sem “aquilo com que se compram os melões”, não há (quase) nada para ninguém. Se isso era válido para a minha geração em que “quem não tinha dinheiro não tinha vícios”, para as novas gerações, a indústria, comércio, serviços e banca inventaram algo que proporciona a toda a gente, ou quase, as condições para usufruir de (quase) tudo: o crédito fácil. E o crédito fácil passou a ser uma oportunidade para pessoas e famílias, anteciparem a aquisição dos bens ou serviços que podem melhorar-lhes o seu bem-estar, como o é a compra de habitação, de viaturas, equipamentos para o lar ou até viagens.

Mas a dívida é uma droga tão potente como o álcool e a nicotina. Em tempos de prosperidade os consumidores usaram-na para melhorar os seus estilos de vida, as empresas pediram dinheiro emprestado para expandir os seus negócios e os investidores recorreram à dívida para melhorar os seus rendimentos.  Enquanto a minha geração aprendeu a viver só com o que tinha, economizar e poupar, as seguintes, com o crédito fácil, o regime de que (quase) tudo se vende a prestações e com a adoção mais alargada dos cartões de crédito, criaram uma sociedade do “compre já e pague depois”. Se é que se pode pagar, o que nem é um grande problema pois o não pagamento tornou-se uma mera opção de estilo de vida e a culpa quase se tornou do financiador descuidado e não do cliente imprudente. Só que, em épocas de crise como a que vivemos em 2008, pela falta de rendimentos que deixaram de poder cobrir as despesas, muitos devedores tiveram de entregar casas, carros e outro património aos bancos, num regresso à realidade nua e crua de uma máxima bem conhecida: quando a despesa anual é superior à receita, o resultado é a desgraça. Foram cerca de 10 anos difíceis em que até fomos chamados a pagar para salvar os bancos. E não foi nada pequena a fatura … 

Mas não se aprendeu nada com isso, na permanente máxima de que os países e as empresas têm de crescer mais e mais, sendo que para isso é preciso consumirmos mais e mais e, consequentemente, será preciso mais e mais crédito, mais e mais dívida. E cá estamos outra vez, agora com a máxima a dizer o contrário: quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade … 

No século XIX, quem não cumprisse as suas dívidas era preso, mas, nos dias de hoje, já ninguém vai preso por dever. Pelo contrário, até dá estatuto: quanto mais se deve, maior se é. E ninguém quer saber se a “bomba” em que andas montado é tua ou de uma instituição de crédito. O que importa é “parecer” aos olhos dos que nos rodeiam.                                                                                                   Embora o crédito seja uma vantagem para as famílias, pode ter vários riscos. Despesas cada vez mais sobrepostas aos rendimentos, criam margens financeiras curtas às famílias para juntar gastos ocasionais ou inesperados e suportar possíveis perdas de rendimento. Além disso, hoje existe um novo perigo: é vulgar vermos campanhas que prometem “crédito fácil e pré-aprovado” ou ofertas de aumento do limite do cartão de crédito. Mas estas propostas, muitas vezes estão associadas a juros muito altos que podem levar a um elevado nível de endividamento, a pagamentos atrasados, a penalidades, a impactos negativos no histórico de crédito e risco de perder bens ou garantias, para além da habituação e dependência do crédito. Acreditar mesmo que existe crédito fácil, é “acreditar no Pai Natal”. O acesso pode ser fácil, mas implica necessariamente taxas de juro mais elevadas. É intuitivo perceber que quanto maior o risco de um crédito, maior terá de ser a taxa de juro associada a tal crédito. O assédio do crédito fácil é comum em todas as épocas, mas especialmente no Natal. Tudo são facilidades e as pessoas são induzidas ao consumo, podendo ou não, com créditos que são fáceis de contratar, mas difíceis ou impossíveis de pagar. E perante as (aparentes) facilidades, fazem-se as compras do que não é necessário, por impulso. E isso contribui para que a dívida das famílias portuguesas esteja perto dos 160 mil milhões de euros, o que significa que cada português tem à partida 17.000€ em dívidas. Já alguém reparou, ou andamos distraídos, nas inúmeras pessoas que têm o salário penhorado? Porquê? Porque “quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade” … 

Mas há sempre uma saída para o sobre-endividamento porque, como diz o povo, “ou há moralidade ou comem todos”. Se um Joe Berardo e um Luís Filipe Vieira ficaram a dever muitos milhões aos bancos e não se passou nada, também o cidadão comum que, ao lado destes “tubarões” não é nada, tem uma escapatória por onde pode sair da lista de devedores: pedir a declaração de “insolvência pessoal” junto do tribunal com a ajuda de um advogado. E, ao fim de três anos, o “insolvente” será libertado definitivamente das dívidas que ficaram por saldar, com exceção de algumas. Nada mau. Mas, se nada disto resultar, há sempre uma última saída: “Morra agora e pague depois”! E há muito devedor que consegue viver bem com isso e, quando morrer, resolve a questão com um “Deus lhe pague” …                                                                             

Trazia “a fisga no bolso de trás” …

Quando andava na escola primária, o “ATL” onde passava a maior parte do tempo depois de sair das aulas era do tamanho da minha aldeia, onde tinha total liberdade para conhecer a natureza, o comportamento dos seres vivos que connosco habitam neste planeta e fabricar os meios para brincar e jogar, fosse à bilharda, à malha, ao peão, ao espeto, ao pica e outros mais. Além disso, ia à fruta, aos ninhos, ao rio Sousa tomar banho e ajudava o sr. Moura a plantar o cebolo e as batatas no quintal dos meus pais, sendo que cada coisa tinha o seu tempo. Mas tinha sempre de fazer a minha fisga, porque “um rapaz sem uma fisga não era ninguém”. A fisga servia para caçar pássaros, participar em torneios entre a miudagem, para ver quem acertava em mais latas e até como arma de defesa, porque não?

Havia dois requisitos fundamentais para construir uma boa fisga: as borrachas e a “forquilha”. As borrachas eram fundamentais porque, se não tivessem boa elasticidade, não atiravam bem, enquanto a “forquilha” exigia muito trabalho para ficar em condições. Conseguir borrachas não era fácil para a maior parte da malta. Eu tinha a sorte de poder recorrer ao meu pai ou ao meu irmão mais velho. Enquanto o primeiro me arranjava um pedaço de “câmara-de-ar” do pneu de um automóvel – coisa que os pneus modernos já não têm – o outro conseguia-me sempre um bocado de “câmara-de-ar” de bicicleta. Normalmente usava mais a borracha das bicicletas porque era mais fina e flexível, enquanto a do automóvel era mais difícil de esticar e exigia mais força. Para fazer a fisga, cortava duas tiras de borracha com 25 a 30 centímetros de comprimento e com cerca de 1,5 cm de largura, tendo o cuidado de as fazer a partir das partes melhores da “câmara-de-ar”, pois como eram pedaços de borracha descartada que já não servia, podia ter pontos mais frágeis que, aplicados na fisga, podiam romper ao fim de alguns disparos. Já a “forquilha” exigia que se procurasse nos carvalhos, oliveiras e castanheiros a ligação de dois ramos em forma de Y, por serem madeiras leves e duras, sendo normalmente a “pega” um pouco mais grossa do que as duas hastes onde prendiam as borrachas. Para preparar a “forquilha eu recorria quase sempre ao senhor Alberto “espingardeiro” onde, apesar da minha idade, gostava de prestar alguns pequenos serviços e aprender como era o caso de acender a forja, aquecer os ferros até ficarem em brasa para serem trabalhados ou polir algumas peças, pois ele tinha ferramentas adequadas para trabalhar madeira por forma a dar-lhe o acabamento que fizesse inveja aos outros. E, com a ajuda dessas ferramentas e de uma folha de lixa apropriada, a forquilha ficava macia como seda. Na parte superior de cada uma das hastes fazia um entalhe arredondado à volta para que, ao amarrar as borrachas, estas ficassem seguras e sem hipóteses de se soltarem, coisa que acontecia com outras feitas mais à pressa. Amarrava a ponta duma borracha a uma das hastes e a outra borracha à outra haste, com “fio norte encerado” que o senhor Pereira sapateiro usava para cozer o calçado, por ser mais resistente, e que eu conseguia por, às vezes, o ajudar a encerar fio. Para concluir a fisga e depois de amarrada cada tira a uma haste, na outra ponta das borrachas prendia um pedaço de couro relativamente fino, que o senhor Pereira também me dava já com o corte certo e dois rasgos onde entravam as borrachas antes de serem amarradas. Com a realização destas operações estava construída a fisga, que nalgumas regiões do nosso país é também conhecida por atiradeira. Finalmente, como munições, eram necessárias as indispensáveis pedras. E depois era só testar a “arma de arremesso”, colocando uma pequena pedra no meio do couro que se segurava com a mão esquerda, enquanto a mão direita agarrava firmemente a forquilha pela pega, esticando as borrachas até a tensão ser suficiente para fazer o arremesso. E os primeiros dias após a sua conclusão eram de certa euforia, fazendo com que, mal saísse da escola, ia treinar a pontaria apontando para um alvo improvisado. Confesso que nunca fui muito bom atirador e hoje gabo-me de nunca ter matado um pássaro sequer. E gabo-me, não porque na altura não quisesse matar, mas porque hoje acho que seria errado. Daquilo que lembro em particular, foi de fazer pontaria a um pardal que estava em cima da rede no quintal da minha avó e fiz um disparo tão bom que acertei … num vaso de barro que rachou ao meio. A fisga era um dos brinquedos populares entre a rapaziada do meu tempo de criança, sem dúvida, apesar de muitos miúdos terem grande dificuldade em conseguir as borrachas porque até as bicicletas eram muito poucas. Pela sua natureza, era um objeto que permitia projetar pequenas pedras a longa distância, com alguma precisão, dependendo da destreza do atirador. Era um forte complemento das aventuras e brincadeiras de criança, tendo um certo poder didático. Claro que às veze era usada com propósitos pouco recomendáveis, pois além de atirarem contra os pássaros, de modo especial a pardais e melros, os mais rebeldes usavam-nas também para algumas maldades como acertar na fruta dos vizinhos.                                                                              Mas, para além de tudo isso, tinha a componente didática com o envolvimento da criança na sua conceção e construção, num espírito de entreajuda e numa competição sadia que recordo com saudade, desenvolvendo em cada um de nós a criatividade, a responsabilidade e a vontade de fazer mais e melhor, tendo-me deixado lições para a vida. Mas a fisga passou à história tal como todos os brinquedos artesanais, hoje exibida como curiosidade do passado num ou outro museu regional, sem que as novas gerações se apercebam da sua importância na infância e adolescência de muitas outras