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A moda, os desfiles e eu. Ou não?

Ora, não sendo eu um apreciador da moda, sempre que sei e posso, gosto de ver o desfile da Victoria’s Secret. Não por usar lingerie, nem pelo balançar do traseiro das esguias modelos da casa, mas, “porque sim”. Só não consegui ver em direto porque a internet veio abaixo de tão sobrecarregada! E vá-se lá imaginar porquê! Também fiquei sem saber se essa visualização intensa foi maior por parte das mulheres, para estarem a par das últimas tendências da moda, ou dos homens, não com as mesmas intenções de interesse em relação à lingerie – a não ser, eventualmente, para ficarem a saber como a retirar mais depressa – muito mais interessados em apreciar a “paisagem” que é sempre agradável à vista. Por essa “capacidade de atração”, por ser “politicamente correto” e inclusivo, a marca, além dos seus “anjos”, fez desfilar ainda gente mais madura, como a cinquentonas Carla Bruni, Eva Herzigova e Kate Moss e, no final, a quase octogenária, Cher. É que, para dar resposta às críticas de que são alvo as grandes marcas nos últimos tempos por só fazerem desfilar na passerelle as chamadas “boazonas”, discriminando as baixinhas, fortes, gordas, deficientes, feias, narigudas, lésbicas, transexuais, travestis, gênero neutro e outras, passaram a incluir no “cardápio” todos os tipos de mulheres que, bem vistas as coisas, são a maioria. Por isso, hoje todas as boas marcas aderiram à chamada “inclusão” e metem nos desfiles gente que outrora nunca desfilaria, a meias com as tais “boazonas que são sempre a atração principal. Todas estas inclusões no mundo das passerelles, deram-me uma ideia: agora que eu estou reformado e afastado da vida ativa, pensei que poderia candidatar-me a modelo “inclusivo”, embora não seja um desejo íntimo. Se é pela idade, a Cher está praticamente no mesmo patamar etário, tal como umas quantas mais que se têm divertido nos últimos desfiles de moda. Porque não eu? Também tenho o direito a divertir-me. E aquele meio parece ser bom para isso. Sei que não tenho prática nenhuma destas andanças, mas tudo isso se aprende, haja vontade e estímulo. Não faltam para aí escolas de modelos, formações, cursos “on line” e estamos sempre a tempo, como o fez a sul coreana Choi Soon Hwa. Trabalhou como auxiliar de ação médica durante muitos anos até que, quando já tinha 72 anos, uma doente lhe disse que tinha todas as condições para ganhar a vida como modelo. E foi assim que passou a praticar em casa a arte de desfilar na passerelle, sozinha e sem ter nenhuma orientação particular de profissionais. Já tinha 80 anos quando se candidatou e foi aceite no Concurso Miss Universo da Coreia do Sul, aproveitando o facto de terem acabado com o limite máximo de idade para participar, até aos 28 anos, e com o não acesso a mães solteiras. Surpreendentemente, ganhou o prémio de melhor vestido. No meu caso, ninguém me disse que tenho condições para ganhar a vida ou divertir-me como modelo e podem também ficar descansados que não vou ganhar o prémio do melhor vestido …

Sei bem que os desfiles femininos são mais apelativos “à vista” do que os masculinos e têm muito mais mercado. Se têm! Tal como não me parece que as modelos “inclusivas” tenham a capacidade de atração de outras, como os “anjos” da Victoria’s Secret, e não só para homens.

Vou ter de aprender a movimentar o corpo e a posar, pelo que tenho de me inspirar no portfólio dos consagrados e nos tipos de poses de modelos masculinos que ficam ótimas e funcionam bem. Caminhar encarando a câmera, como se fosse apanhado de surpresa ou desviar o olhar, com passada vigorosa, alongando o pescoço e com o queixo para a frente, é das situações mais comuns que preciso treinar. Além disso, tenho de praticar os outros tipos de pose: na ação, relaxada, do olhar, do sorriso, das mãos, do estilo livre, dramático, sexy e sensual e a pose do casal a trabalhar com outro modelo. Espero que, quando vier a desfilar, não me rasguem as roupas, como fez a marca italiana Avavav na semana da moda de Milão em 2023 e, muito menos o que fizeram no desfile de 2024, quando entregaram ao público baldes de lixo pelo que, quando o desfile começou, as modelos foram recebidas com restos de papel, cascas de banana, garrafas e latas quebradas, ovos e até alguns líquidos. Até a criadora da marca não escapou e levou com um bolo na cara enquanto estava a agradecer ao público. A marca deixou ainda todos perplexos ao mostrar modelos que corriam pela passarela como se estivessem a fugir de alguém e com roupas malvestidas e descosidas. Ora isso já eu faço muitas vezes. Mas o expoente máximo disso aconteceu em Paris, onde uma passagem de modelos fez furor ao mostrar os homens de túnica bem curta e sem cuecas, com o “instrumento” à mostra. Se a “moda pega” por cá …                   

Só cá para nós, andei a treinar aqueles passos largos de como quem vai com pressa para apanhar o comboio, de olhos focados lá à frente, braços e mãos relaxados, a balançar e estava quase a apanhar-lhe o jeito. 

Mas, ao saber que 86-60-86 deixou de ser a fórmula perfeita das supermodelos da Victoria’s Secret, a marca das asas de anjo por onde passaram Cindy Crawford, Kate Moss, Linda Evangelista, Carla Bruni, Claudia Schiffer e a portuguesa Sara Sampaio, desisti dessa ideia, em protesto por acabarem com o conceito das “boazonas” e dos corpos perfeitos. É que não é justo, pois os homens, e as mulheres também, perderam algo com que sonhar …

A verdadeira história do Bairro Social

Parado na esquina das instalações da extinta Fabinter, olhava o local onde outrora se erguiam vários mastros com bandeiras desfraldadas e se encontrava a pedra de granito que perpetuava o nome do Homem a quem se deveu a história de maior sucesso empresarial de Lousada, placa essa que levou sumiço poucos meses depois da sua morte em Junho de 85, como que a quererem apagar a sua memória. E depois olhei para o Bairro Social que uns políticos da treta (para não lhes chamar “políticos de m.”) viriam a batizar de “Bairro Dr. Abílio” – apesar do muito respeito que o Dr. Abílio merecia de todos os lousadenses, entre os quais eu me incluía, a verdade é que nada fez nem contribuiu para que aquele bairro ali nascesse – mas sem nenhum respeito pelo Homem a quem tal direito era devido: Hans Isler, um cidadão suíço que veio para Portugal, adotou Lousada como sua terra e que escolheria como sua “residência definitiva”.   

Há cinquenta anos a Fabinter era uma empresa de confeções sediada precisamente no outro lado dos terrenos onde anos mais tarde viria a ser construído o Bairro Social e que, com a ampliação das instalações, ganhou uma dinâmica de sucesso muito grande, assente na promoção e desenvolvimento da sua marca de referência: KISPO. Esta marca teve sucesso tão grande que rapidamente os clientes passaram a chamar “kispos” a tudo o que fosse anoraques, tendo a marca sobreposto o seu nome ao produto, com grande impacto em Portugal e na Europa, de tal forma que a palavra “kispo” passou a constar no Dicionário de Língua Portuguesa para referir “blusão de material impermeável, geralmente curto”. Depressa se impôs e dominou o mercado nacional, vindo-se a expandir na Europa a partir de uma empresa de distribuição que Hans Isler tinha na Suíça. Liderada por Hans Isler, a Fabinter era o motor de desenvolvimento do concelho de Lousada nessa altura, tornando-se ainda a fonte de conhecimento mais moderna do país ao nível do fabrico de confeções, tendo formado muitos dos futuros industriais do setor e onde foram colher informação todas as outras empresas do ramo a nível nacional.

Mas Hans Isler não criou só uma empresa de sucesso e uma escola que serviria todo o setor têxtil da confeção dos anos seguintes. Para além de tudo isso, revolucionou o mercado de trabalho ao recrutar para o seu quadro de pessoal centenas de mulheres e, por arrastamento, milhares de muitas outras nas empresas subcontratadas, mudando radicalmente a nossa maneira de vestir. Mas foi ainda mais longe ao assumir uma nova postura empresarial, somente iniciada de forma mais contida por José Dias na Estofex, com um nível salarial acima da média, condições adequadas ao bem-estar dos trabalhadores, regalias sociais e a assunção da responsabilidade social da empresa perante a comunidade que a servia. Foram uma imagem de marca de um homem vindo de um outro país com uma mentalidade muito acima da que aqui vingava. Numa fase conturbada depois do 25 de Abril e após ter posto na rua um seu colaborador que agarrou pelos colarinhos e que tentava criar convulsões revolucionárias internas, deixou uma frase marcante no seu discurso na homenagem que lhe fizemos para agradecer a oferta que fez de um instrumental novo para a banda de música da ACML. Recordo: “É fácil ser-se socialista. Difícil é ser-se empresário com princípios sociais”. E a esse nível das preocupações sociais, ele elevaria a fasquia ao pensar ainda mais nos trabalhadores quando adquiriu todos aqueles terrenos em frente à sua fábrica com a intenção de lhes retribuir ainda mais. Num tempo em que a maioria das pessoas não dispunha de habitações com condições mínimas de habitabilidade, dispôs-se a avançar com a construção de um Bairro para todos eles, precisamente naqueles terrenos, tendo para tal mandado elaborar um projeto a um arquiteto amigo, na Suíça, composto por um conjunto de blocos habitacionais e um bloco comunitário central para atividades sociais. O projeto daria entrada na Câmara Municipal de Lousada, mas, que se saiba, ficou a marcar passo indefinidamente sem nenhuma explicação plausível. No entretanto, dentro da empresa foi-se falando na forma de organização para o avanço com a construção, tendo sido sugerida a criação de uma Cooperativa de Habitação. Mas, a par disso, começaram a surgir na discussão outras questões imprevistas. Sendo a maioria das colaboradoras oriunda dos meios rurais, ligadas à terra e à produção de produtos hortícolas bem como à criação de animais de capoeira, coelhos e porcos para alimentação própria começaram a questionar como e onde poderiam criar esse animais e produzir as tais hortaliças e outros produtos agrícolas. Perante todas estas “areias na engrenagem”, Hans Isler ultrapassou o problema seria pondo ao dispor parte dos outros terrenos de que dispunha junto à fábrica tanto na mata como na vinha, onde se podiam dedicar a tais atividades.

Mas o projeto continuou a não ter resposta dos Serviços da Câmara Municipal e o tempo foi passando, cansando quem se propunha a tão grande empreitada, moendo as paciências, arrasando o entusiasmo do empresário. Até que um dia, numa conversa com o embaixador suíço em Portugal, seu amigo pessoal, Hans Isler contou-lhe tudo o que tinha feito para concretizar o empreendimento para os seus trabalhadores e da incapacidade de poder avançar, por inércia municipal. Na conversa, o embaixador aconselhou-o a não se chatear mais e que podia dar um contributo a Lousada e, eventualmente, a muitos dos trabalhadores da sua empresa, cedendo o terreno ao Fundo de Fomento da Habitação, criado havia pouco tempo, pois estavam à procura de terrenos para avançar com projetos e com a construção de habitações sociais. E que, conhecendo alguns dirigentes desse novo organismo, fácil seria fazer com que eles se interessassem pelo terreno e por construir um Bairro Social. Cansado de esperar pela concretização do seu sonho, Hans Isler acabaria por aceitar a sugestão do embaixador e cedeu o terreno ao FFH, com a condição de ali fazer nascer um Bairro Social, o que veio a acontecer. 

Felizmente o Benemérito Hans Isler, uma das figuras máximas de Lousada do século XX, não chegaria a viver tempo suficiente para conhecer tamanha ingratidão, sofrer tal afronta e a desfeita dos responsáveis políticos que, provavelmente, também quiseram apagar a sua memória, precisamente num local onde ela deveria ter sido perpetuada. Mas na verdade, apesar da injustiça ser desta dimensão, nunca nenhum responsável político teve a coragem de a reparar e de “dar o seu a seu dono” …

Um coração a pensar nos outros

Numa reunião de amigos, um deles que já está divorciado há uns quantos anos e cortou relações com o seu único filho, nora e neto, dizia-me que agora é absolutamente independente e não precisa de ninguém. Deixei-o estender a sua teoria e, quando parou de divagar, perguntei-lhe: “Zé, se não precisas de ninguém, é sinal de que foste tu que fizeste este nosso almoço, cultivaste os legumes, produziste o vinho e o pão, criaste e mataste a vitela que comeste, serviste à mesa e vais arrumar, limpar, lavar e tudo o mais”? Eu percebi ao que ele queria referir-se ao dizer que “não precisa de ninguém”, pois é um slogan que às vezes se atira só como desabafo e nada mais. 

Como disse D. Tolentino de Mendonça, cardeal, poeta e teólogo, “a nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros”. Porque dependemos todos uns dos outros, não só para ser felizes, mas mesmo para sobreviver. A sociedade funciona assim e parece que não entendemos o que a história nos ensina: eu dependo dos outros, mesmo que não queira. E hoje, mais que nunca, é impossível alguém colocar-se na falsa posição de que não depende de ninguém. E nesta dependência dos outros em toda a nossa vida, desde o momento em que nascemos, “os outros” têm uma enorme importância ao longo dessa caminhada. E a questão central é percebermos e até que ponto queremos interagir, partilhar, ajudar, ir e estar com “os outros”.

No Michigan, nos Estados Unidos, o dono de uma livraria decidiu mudar de instalações. A nova loja ficava apenas a um quarteirão de distância. Mas, em vez de empacotar os livros em caixas e contratar camiões para fazer a mudança, a comunidade decidiu fazer algo diferente. Mais de trezentas pessoas formaram uma corrente humana e, de mão em mão, livro por livro, moveram toda a livraria e, o mais incrível, é que os livros chegaram à nova loja exatamente na mesma ordem em que estavam nas instalações antigas. Este caso fala sobre união, gentileza, sobre o poder duma comunidade que escolhe somar e não esperar. 

Na vida nós carregamos histórias, pesos invisíveis, que por vezes parecem pesados demais para carregar sozinhos. Mas, quando alguém estende a mão, tudo muda. Porque ajudar não é sobre fazer muito, é sobre estar ali a dizer “eu estou contigo”. Esta corrente não transportou apenas livros. Ela moveu corações, lembrou a todos que pertencemos uns aos outros, que juntos a travessia é mais leve. E que quando ajudamos alguém a carregar um peso, também ficamos mais fortes. Podemos não conseguir fazer uma grande mudança na vida, de alguém, mas será que não podemos ajudar a carregar um livro? Ou uma caixa? Ou talvez uma dor? E se começássemos a olhar mais para a comunidade, para quem vive ao nosso redor, ao nosso lado? 

O mundo não precise de heróis solitários, mas de mãos estendidas, de olhares atentos, de pessoas que escolhem fazer parte. E a magia em ajudar é que, quando levamos alívio a alguém, também nos curamos.

Tem 82 anos de idade, uma pequena reforma, vive à beira da estrada numa casa humilde numa aldeia de Lousada e toda a gente a trata, carinhosamente, por Teresinha. Tem oito filhos que são a sua maior riqueza e de quem muito se orgulha, tendo herdado da sua avó a sua maior qualidade: pensar e preocupar-se com “os outros”, mas muito especialmente com aqueles que “precisam”. Sim, porque ela durante a sua vida também “precisou”. Já com cinco filhos, seguiu o marido para Angola quando aquilo era um pedaço de Portugal, à procura de uma vida melhor. E conseguiram-na, não fosse a independência da ex-colónia que os fez regressar à terra, com um monte de dinheiro angolano, mas sem valor. E tiveram de recomeçar de novo, passar por dificuldades e precisar dos outros. Mas seguiu em frente e nunca se esqueceu de estender a mão para ajudar. Vejo-a de vez em quando a atravessar a estrada agarrada ao carrinho de mão a caminho do seu campo que cultiva, para si e para os “outros”, que são sempre a sua preocupação maior. Apesar de andar curvada, pelo peso da idade, da sua coluna que já não é o que era ou do excesso de entrega à sua missão, ela dedica os seus dias a trabalhar, para si, para ajudar quem precisa e até de quem não. Mas está na sua maneira de ser. A título de exemplo, quando semeia o cebolo, não fica pela pequena “margem” a pensar só nas suas necessidades, mas a pensar também nos outros. E fica triste quando já não tem mais para servir os que chegaram tarde. Semeia milho para a bicharada, hortaliças diversas que servem muita gente e até flores. Por isso, com regularidade lá vai ela com o carrinho de mão carregado de flores a caminho do cemitério, para “assear” as sepulturas, não só dos seus, mas umas quantas mais: uma porque é a campa de uma senhora que foi bondosa com ela e não tem cá família, outras porque estão ao abandono por uma ou outra razão e porque não consegue ficar indiferente ao ver uma sepultura esquecida. Por norma cuida de oito sepulturas, fora as outras …

Recentemente mandou vir de Montalegre um enorme saco de batatas que pesava uma tonelada. Teve trabalho de escolha e limpeza para vários dias, mas não se ralou com isso, pois o principal destino das batatas era a casa … dos outros. De uma tonelada, provavelmente não ficaram em sua casa mais de cinquenta quilos, pois foi levando a casa de A porque tem estado doente, a casa de B a quem a vida não está a correr bem, a casa de C porque lhe serve como semente e a casa de D só porque sim …  E não fica à espera que os conhecidos da aldeia lhe peçam para ajudar nos trabalhos agrícolas que implicam mais gente, pois ela aparece para trabalhar mesmo sem ser convidada, mesmo curvada, naquilo que é o verdadeiro espírito comunitário e que tão bem tem praticado ao longo de décadas …

Ela leva à letra e mais à prática, o mandamento bíblico de “amar o próximo como a si mesmo”. E é incrível essa sua força moral, o exemplo que nos dá, diariamente, e a alegria que ela encontra na alegria dos outros, ao partilhar muito do pouco que tem. E, por isso mesmo, tal entrega tem um valor tão grande, tão grande, que só pode ser possível devido ao tamanho do seu coração …

O Turismo é uma nova religião?

Quando era criança não se falava em turismo. A maioria das pessoas cá da terra nem sequer conhecia o Porto, quanto mais Espanha, que já era uma terra muito para além do sol-posto. E para aqueles, poucos, que conseguiram viajar para o Brasil, de barco, indo como imigrantes, até se fazia uma despedida como sendo para sempre. O Zé da tia Quina para lá foi e nunca mais o vi. Além disso, quase ninguém tinha férias. Os poucos “fidalgos” que tinham dinheiro para umas passeatas, iam até Coimbra, Fátima e, muito poucos, a Lisboa, fazendo questão de colarem nas malas de viagem, em cabedal, autocolantes das pensões por onde passavam, porque hotéis havia poucos, para exibir ao longo da viagem, à chegada … e provocar inveja. Como se fossem muito viajados …

Mas a vida foi mudando, a partir de certa fase de forma mais acelerada, fazendo com que (quase) toda a gente tenha férias e o turismo fosse massificado e se tornasse numa indústria poderosa. De tal forma, que o marketing e publicidade leva as pessoas a acreditar que fazer turismo lhes faz bem e as torna mais felizes. Viajar, admirar paisagens, museus, monumentos e obras de arte, é um substituto para um ritual religioso. Assim, o turismo pode ser visto como uma nova religião do mundo. A única coisa que têm em comum católicos, protestantes, muçulmanos, hindus, budistas e ateus, é a crença inabalável de ver a Torre Eiffel, o Parténon, a Capela Sistina, a Estátua da Liberdade ou outro qualquer monumento icónico. É um ritual que todos eles cumprem.

Há férias em “Peregrinação”, sejam excursões de autocarro, barco ou avião, para visitar cidades, museus, castelos e mais. São férias quase sempre móveis, a andar de um lado para o outro. E há férias que têm como destino um “Paraíso”, podendo ser em estâncias balneares, onde o indivíduo sonha por um regresso ao estado puro e à inocência. Dizem ser férias estáticas, alapados num local. Quase sempre, não passam de rituais que é necessário cumprir. Como em Punta Cana, na República Dominicana, para onde se viaja de avião e de autocarro do aeroporto a um hotel junto à praia onde se fica por uma semana ou duas no regime de “tudo incluído” e o mesmo é dizer “na engorda”, esparramado ao sol como os lagartos para ficar bronzeado, apanhar um escaldão e meter a carcaça na água do mar ou da piscina. E emborcar uns copos. No fim, a mesma viagem de autocarro e avião, mas ao inverso, para poder dizer “eu estive na República Dominicana”. Cumpriu-se o ritual, mas não se viu nada daquele país. Para bronzear-se, qualquer praia servia. Até cá. E um ano é em Punta Cana, depois nas Maldivas, Cancum, Seychelles, Varadero e por aí além, como em romagem pelas “capelinhas”, por onde passam habitualmente milhões de “fiéis” a cumprir o ritual. Há um denominador comum a quase todas: o regresso a casa. Tantas vezes a melhor parte …

Notícias do Paraíso: na brochura de férias no Havai, vê-se uma foto a     

cores de uma praia tropical: mar e céu de um azul brilhante, areia branca e só um par de figuras humanas deitadas à sombra de uma palmeira verde. É o passaporte para o Paraíso. Em todas as brochuras a mesmo foto, a mesma palavra: Paraíso. Mas ela nada tem a ver com a realidade. Mais de 7 milhões de pessoas visitaram o Havai em 2024. Alguém consegue encontrar lá uma praia tão deserta como a da foto da brochura? É o turismo a vender o mito do Paraíso. Um antropólogo diz que da simples repetição da palavra Paraíso resulta uma lavagem ao cérebro do turista, fazendo-o acreditar que foi aí que chegou, apesar da discrepância entre a realidade e a promessa. Por isso, lá encontramos a palavra Paraíso a repetir-se até à exaustão na Padaria Paraíso, Clínica Dentária Paraíso, Jet Ski Paraíso, Cruzeiros Paraíso, Bebidas Paraíso, Empréstimos Paraíso, Lavandaria Paraíso, Loja de Animais Paraíso, Fornecimentos Paraíso, Antiguidades Paraíso, Brinquedos Paraíso, Capela Paraíso, Desinfestações Paraíso, Móveis Usados Paraíso, Ouro Paraíso, Licor Paraíso, Massas Paraíso e tantas outras empresas com a tal marca Paraíso. No caso do Havai, o bairro de Waikiki em Honolulu é hoje um dos locais mais densamente povoados do mundo. Ali vivem, sempre, cerca de 100.000 almas em pouco menos de 400.000 metros quadrados. Um Paraíso, sem a praia deserta, “um lar sem inverno dos mortos felizes”! Uma velha habitante dizia: “deram cabo disto. Quase não se via um hotel com mais de 2 andares. Construíram uma muralha de grandes hotéis ao longo da costa, só com uma passagem estreita que até temos de nos encolher para passar e ir à praia. Waikiki era uma aldeia e agora é uma grande cidade. Montes de gente na praia, na rua, nos passeios. Muito lixo, crime. Até o clima piorou, demasiado quente”. E é mais uma vez esta “religião” a degradar o planeta como em tantos locais e monumentos do mundo: Os carreiros, na Região dos Lagos, transformaram-se em trincheiras. Os frescos da Capela Sistina sofrem danos pela respiração e calor dos visitantes. Cento e oitenta pessoas entravam a cada minuto na Catedral de Notre Dame, com os pés a desgastar o pavimento e com o fumo dos escapes dos autocarros a corroer os trabalhos em pedra. A poluição das viaturas em bicha para as estâncias de esqui, fazem morrer as árvores e causam avalanches. O mar Mediterrânio é como uma sanita gigante, mas sem corrente de autoclismo e uma em cada seis pessoas que nele se banha corre o risco de apanhar uma doença. Em 1987, tiveram de fechar Veneza porque estava cheia. E se em 1963 desceram o Rio Colorado só 46 pessoas ao longo do ano, hoje são mais de 13.000 … por dia.  

Os Paraísos de férias são, inevitavelmente, metamorfoseados, em locais de Peregrinação pela força da indústria turística. Panoramas triviais ou totalmente inócuos são “trabalhados” a fim de poder ser um itinerário ao longo dos quais os turistas podem ser transportados e servidos por lojas, restaurantes, shoppings, barcos fluviais, artistas, etc. Pegue-se numa ilha qualquer. Em nove em cada dez vezes faz-se uma estrada a contorná-la, formando um círculo, isto é, uma correia de transmissão destinada a transportar pessoas de uma armadilha de turistas até à seguinte, com um grupo a sair enquanto o outro chega. E o mesmo acontece com itinerários de cruzeiros, voos charter, etc. Cada operação na linha de montagem obedece a uma ficha que indica ao operador a altura precisa em que deve iniciar a operação seguinte. Eliminam-se os engarrafamentos, garante-se o acesso e assegura-se o “Paraíso” para toda gente …  

Pague agora e morra depois …

Por norma, hoje vive-se a crédito, às prestações, sem preocupações de maior porque se pode “morrer agora e pagar depois”, até porque, pagar na outra vida é, presumivelmente, mais fácil. E tudo é simples com o crédito facilitado porque os bancos e as casas de crédito vivem disso: emprestar dinheiro ou, melhor, vender dinheiro. Ora, o normal nos nossos dias é comprar quase tudo a crédito por conta do amanhã. No entanto há quem tenha descoberto um rico filão a vender e cobrar um serviço que só se recebe depois de morto: o “pague agora e morra depois”. Assim, já não é preciso estar às portas da morte para planear o fim de vida, querer escolher todos os pormenores das cerimónias fúnebres e deixá-los pagos, para que não seja uma preocupação nem encargos extras para os familiares.

Pois é verdade, há agências funerárias a vender o serviço de funeral ao próprio, o futuro morto, na modalidade de “pague agora e morra depois”. E se por cá ainda está a dar os primeiros passos, a verdade é que em alguns países como os Estados Unidos, a clientela já tem um peso muito significado no negócio, tanto por razões financeiras como emocionais no dizer das funerárias. Por um lado, compra-se o funeral ao preço de hoje, para um serviço que só será prestado no futuro, que pode ser mais ou menos distante, mas seguramente mais caro à data. Por outro, é o próprio “morto” quem define, negoceia e paga todos os pormenores do último evento social onde ele será a figura principal e onde deverão estar presentes os familiares, amigos mais próximos e até inimigos.

Com esta nova modalidade dá para escolher os detalhes, desde o tipo de madeira da urna (do pinho ao mogno), a sepultura, o jazigo ou a cremação, as flores, as pagelas, o livro de condolências, o carro e a música. Pode até incluir pedidos invulgares como passar o carro fúnebre num lugar onde foi feliz, seja a sua casa, o estádio do clube do seu coração ou da sua antiga escola. Tudo é uma questão do tamanho do rombo que se queira dar na conta bancária. Neste sistema de venda antecipada, o futuro morto deixa “tudo tratadinho” sem que fiquem assuntos delicados para quem cá fica, garantindo que as suas últimas vontades serão respeitadas. Há quem faça escolhas muito personalizadas como as flores – rosas vermelhas, o padre, a música – de Wagner, o fato, a camisa e até a gravata rosa.

As agências funerárias dispõem já de uma “ementa” vasta e variada para satisfazer os gostos de todo o tipo de “mortos” e já começaram a conquistar clientela. Dizia uma delas: “O meu funeral está pago e tive de preencher um papel com todas as minhas vontades. Quero que me vistam o vestido com mais brilhantes que eu tiver na altura, quero ser cremada e que coloquem as cinzas numa caixinha com muita purpurina. No trajeto até à igreja, vou de charrete com cavalos. Na cerimónia, não quero ninguém de preto”.

Por cá o negócio não tem avançado grande coisa porque, mais do que por uma questão cultural, terá a ver com o facto da Segurança Social comparticipar o funeral. E a maioria não quer perder o subsídio, nem mesmo depois de morto …                                                                                 Mas isto de “pague agora e morra depois” tem um grave problema que em Portugal ainda pode ser pior do que nos Estados Unidos: por lá, este negócio está-se transformando num pesadelo para muitas famílias americanas, que estão com “o coração nas mãos” ou melhor, com as mãos na carteira, ao verem o seu rico dinheirinho voar. Isso mesmo, pois lá como cá, também há “chico-espertos” e umas quantas agências funerárias não estão a honrar os compromissos assumidos com famílias de diversas regiões dos EUA. Um caso tem tido grande repercussão na imprensa, pois o novo proprietário de um “complexo” funerário de Memphis, anunciou que “nunca teve a intenção de cumprir os 13.500 funerais pagos antecipadamente”.

Ora, um golpe destes, já não deixa morrer tranquilamente todos os investidores antecipados em milhares de contratos funerários pré-pagos, que impunha à empresa encarregar-se de todos os detalhes de funerais, incluindo preparativos e decoração de velórios, igrejas, capelas e das residências dos contratantes. Mais do que uma afronta ao sentimento de centenas de milhares de norte-americanos, isto revelou a “ponta de um iceberg” que pode tornar-se num pesadelo para pessoas como um casal que já havia pago o seu funeral há 24 anos ao até então “respeitável complexo mortuário”. E, segundo um alto responsável americano no chamado “mercado da morte”, este caso está longe de ser um ato isolado. “Casos deste tipo estão a ser comuns, pois os diretores de várias funerárias desapareceram com o dinheiro pago antecipadamente”, lamentou. Ora, não havendo por lá um subsídio de funeral semelhante ao da nossa Segurança Social, os “mortos” com funeral pré-pago correm o risco de ficar à porta de casa à espera de quem nunca os virá buscar …

Cá para nós que ninguém nos ouve, a má experiência americana e as suas consequências devem ser um aviso à navegação nacional e aos potenciais interessados em “pagar agora e morrer depois”, mais ainda tendo em conta que se isto acontece lá onde a justiça costuma ter mão pesada, aqui isto pode ser um pouco pior pois, se acontecer mesmo, como todos sabemos, a nossa justiça ainda fará regressar cá os mortos para os obrigar a indemnizar as agências funerárias por não terem morrido antes delas falirem. E, para serem enterrados segunda vez, vai ser uma chatice, pois já não terão direito a um novo subsídio da Segurança Social …  

Quem os viu e quem os vê!

As crises políticas têm posto a nu o tipo de gente que nos governa e vamos continuar a vê-los na campanha eleitoral que está à porta, atirando-nos e jogando com emoções em vez de propostas sérias.

Em tempos idos, a nobre arte da política impunha que os cargos de governação, representação de eleitores e nomeação fossem ocupados por pessoas “honradas”. Mas a honra quase desapareceu e é, por estes dias, fora de moda. O conceito passou ser “interpretado” da forma que der mais jeito. Basta olhar para as bancadas parlamentares saídas das primeiras eleições livres e compará-las com as de hoje. O mesmo vale para os governos. O critério para os eleitos e nomeados era, antes de mais, de gente influente e com pensamento, vida profissional com provas dadas, respeito conquistado e autoridade reconhecida pelos demais. Não eram cidadãos modelo, porque não há pessoas perfeitas, mas eram homens e mulheres distintos, porque se distinguiam. A política e os cargos públicos eram vistos como missão e nunca como profissão, como tarefa e não como ocupação, como serviço e não como benefício. Esse tempo passou há décadas. Os “políticos” que tomaram os “aparelhos” dos dois principais partidos tornaram-se profissionais da política e, curiosamente, muito pouco profissionais. O caminho deixou de ser feito através da profissão, da vida, do exemplo, do mérito, da sabedoria, do reconhecimento, e a via de entrada num parlamento ou num governo, ou em quaisquer outros altos cargos da administração, é quase exclusivamente através da escola partidária, alinhamentos internos, do xadrez onde se movem concelhias e distritais, do apoio que o chefe da ocasião recebe das suas tropas. Nos anos de democracia, o mérito, o conhecimento, o reconhecimento, o valor, deu lugar a amigos certos, à conquista do poder interno, à “confiança pessoal”, ao percurso feito para lá chegar como para se governar ou estar no parlamento fossem o justo prémio para uma vida “dedicada” ao partido. Mas um bom diretor de campanha, um fervoroso agitador de bandeiras, um chefe de claque para animar arruadas, um colador de cartazes e o assessor competente e dedicado não o torna, de forma automática, num competente chefe de gabinete, secretário de estado ou ministro. Com o tempo, a geração que fez o 25 de Abril foi sendo substituída pelos seus filhos, os filhos do 25 de Abril, sobre a qual vale a pena ler o artigo escrito em 2013 por Pedro Bidarra, psicólogo, pianista, publicitário, colunista e agora escritor, em 2013, mas que é bem atual e vale a pena transcrever, com a devida vénia:                                                                                                                              “Não confio na minha geração, nem para se governar a si própria. E temo pela que se segue. Somos quase todos filhos do 25 de Abril, mas uns são mais filhos do que outros. A geração que fez o 25 de Abril era filha do outro regime. Era filha da ditadura, da falta de liberdade, da pobre e permanente austeridade e da quarta classe antiga. Tinha crescido na contenção, na disciplina, na poupança e a saber (os que à escola tinham acesso) Português e Matemática. A minha geração era adolescente no 25 de Abril, o que sendo bom para a adolescência foi mau para a geração. Enquanto os mais velhos conheceram dois mundos – os que hoje são avós e saem à rua para comemorar ou ficam em casa a maldizer o dia em que lhes aconteceu uma revolução – nós nascemos logo num mundo de farra e festa, num mundo de sexo, drogas e rock & rol, num mundo de aulas sem faltas e de hooliganismo juvenil em tudo semelhante às claques futebolísticas, mas sob cores ideológicas e partidárias. O hedonismo foi-nos decretado como filosofia ainda não tínhamos barbas nem mamas. A grande descoberta da minha geração foi a opinião: a opinião como princípio e fim de tudo. Não a informação, o saber, os factos, os números. Não o fazer, o construir, o trabalhar, o ajudar. A opinião foi o deus da minha geração. Veio com a liberdade, e ainda bem, mas foi entregue por decreto a adolescentes e logo misturada com laxismo, falta de disciplina, irresponsabilidade e passagens administrativas. Eu acho que a minha geração é a geração do “eu acho”. É a que tem controlado o poder desde Durão Barroso. É a geração deste primeiro-ministro, do ministro das Finanças e do anterior primeiro-ministro. E dos principais diretores dos media. E do Bloco de Esquerda e do CDS. E dos empresários do parecer – que não do fazer. É uma geração que apenas teve sonhos de desfrute ao contrário da outra que sonhou com a liberdade, o desenvolvimento e a cidadania. É uma geração sem biblioteca, nem sala de aula, mas com muito RGA e café. É uma geração de amigos e conhecidos e compinchas e companheiros de copos e de praia. É a geração da adolescência sem fim. Eu sei do que falo porque faço parte desta geração. Uma geração feita para as artes, para a escrita, para a conversa, para a música e para a viagem. É uma geração de diletantes, de amadores e amantes. Foi feita para ser nova para sempre e, por isso, esgotou-se quando a juventude acabou. Deu bons músicos e atores, bons desportistas, bons artistas. E drogaditos. Mas não deu nenhum bom político, nem nenhum grande empresário. Talvez porque o hedonismo e a diletância, coisas boas para a escrita e para as artes, não sejam os melhores valores para atividades que necessitam de disciplina, trabalho, cultura e honestidade; valores, de algum modo, pouco pertinentes durante aqueles anos de festa. Eu não confio na minha geração, nem para se governar a ela própria, quanto mais para governar o país. Mas o pior é que temo pela que se segue. Uma geração que tem mais gente formada, muito mais gente educada, mas que tem como exemplos paternos Durão Barroso, Santana Lopes, José Sócrates, Passos Coelho, António José Seguro, João Semedo e companhia (e António Costa). A geração que aí vem teve-nos como professores. Vai ser preciso um milagre. Ou então teremos de ressuscitar os velhos. Um milagre, lá está” …

Morra agora e pague depois …

Num mundo perfeito, todos nós teríamos o direito e condições para ter tudo. Mas desse mundo ideal, só nos ficou o direito, faltando-nos o melhor: as condições. Eu tenho o direito de ter uma casa nas Caraíbas bem junto à praia, de viajar pelo mundo e conhecer todos os lugares maravilhosos de que ouço falar e vejo imagens, mas faltam-me as tais condições, neste caso económicas, para usufruir do meu direito. Sem “aquilo com que se compram os melões”, não há (quase) nada para ninguém. Se isso era válido para a minha geração em que “quem não tinha dinheiro não tinha vícios”, para as novas gerações, a indústria, comércio, serviços e banca inventaram algo que proporciona a toda a gente, ou quase, as condições para usufruir de (quase) tudo: o crédito fácil. E o crédito fácil passou a ser uma oportunidade para pessoas e famílias, anteciparem a aquisição dos bens ou serviços que podem melhorar-lhes o seu bem-estar, como o é a compra de habitação, de viaturas, equipamentos para o lar ou até viagens.

Mas a dívida é uma droga tão potente como o álcool e a nicotina. Em tempos de prosperidade os consumidores usaram-na para melhorar os seus estilos de vida, as empresas pediram dinheiro emprestado para expandir os seus negócios e os investidores recorreram à dívida para melhorar os seus rendimentos.  Enquanto a minha geração aprendeu a viver só com o que tinha, economizar e poupar, as seguintes, com o crédito fácil, o regime de que (quase) tudo se vende a prestações e com a adoção mais alargada dos cartões de crédito, criaram uma sociedade do “compre já e pague depois”. Se é que se pode pagar, o que nem é um grande problema pois o não pagamento tornou-se uma mera opção de estilo de vida e a culpa quase se tornou do financiador descuidado e não do cliente imprudente. Só que, em épocas de crise como a que vivemos em 2008, pela falta de rendimentos que deixaram de poder cobrir as despesas, muitos devedores tiveram de entregar casas, carros e outro património aos bancos, num regresso à realidade nua e crua de uma máxima bem conhecida: quando a despesa anual é superior à receita, o resultado é a desgraça. Foram cerca de 10 anos difíceis em que até fomos chamados a pagar para salvar os bancos. E não foi nada pequena a fatura … 

Mas não se aprendeu nada com isso, na permanente máxima de que os países e as empresas têm de crescer mais e mais, sendo que para isso é preciso consumirmos mais e mais e, consequentemente, será preciso mais e mais crédito, mais e mais dívida. E cá estamos outra vez, agora com a máxima a dizer o contrário: quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade … 

No século XIX, quem não cumprisse as suas dívidas era preso, mas, nos dias de hoje, já ninguém vai preso por dever. Pelo contrário, até dá estatuto: quanto mais se deve, maior se é. E ninguém quer saber se a “bomba” em que andas montado é tua ou de uma instituição de crédito. O que importa é “parecer” aos olhos dos que nos rodeiam.                                                                                                   Embora o crédito seja uma vantagem para as famílias, pode ter vários riscos. Despesas cada vez mais sobrepostas aos rendimentos, criam margens financeiras curtas às famílias para juntar gastos ocasionais ou inesperados e suportar possíveis perdas de rendimento. Além disso, hoje existe um novo perigo: é vulgar vermos campanhas que prometem “crédito fácil e pré-aprovado” ou ofertas de aumento do limite do cartão de crédito. Mas estas propostas, muitas vezes estão associadas a juros muito altos que podem levar a um elevado nível de endividamento, a pagamentos atrasados, a penalidades, a impactos negativos no histórico de crédito e risco de perder bens ou garantias, para além da habituação e dependência do crédito. Acreditar mesmo que existe crédito fácil, é “acreditar no Pai Natal”. O acesso pode ser fácil, mas implica necessariamente taxas de juro mais elevadas. É intuitivo perceber que quanto maior o risco de um crédito, maior terá de ser a taxa de juro associada a tal crédito. O assédio do crédito fácil é comum em todas as épocas, mas especialmente no Natal. Tudo são facilidades e as pessoas são induzidas ao consumo, podendo ou não, com créditos que são fáceis de contratar, mas difíceis ou impossíveis de pagar. E perante as (aparentes) facilidades, fazem-se as compras do que não é necessário, por impulso. E isso contribui para que a dívida das famílias portuguesas esteja perto dos 160 mil milhões de euros, o que significa que cada português tem à partida 17.000€ em dívidas. Já alguém reparou, ou andamos distraídos, nas inúmeras pessoas que têm o salário penhorado? Porquê? Porque “quando a despesa é superior à receita, o resultado é a felicidade” … 

Mas há sempre uma saída para o sobre-endividamento porque, como diz o povo, “ou há moralidade ou comem todos”. Se um Joe Berardo e um Luís Filipe Vieira ficaram a dever muitos milhões aos bancos e não se passou nada, também o cidadão comum que, ao lado destes “tubarões” não é nada, tem uma escapatória por onde pode sair da lista de devedores: pedir a declaração de “insolvência pessoal” junto do tribunal com a ajuda de um advogado. E, ao fim de três anos, o “insolvente” será libertado definitivamente das dívidas que ficaram por saldar, com exceção de algumas. Nada mau. Mas, se nada disto resultar, há sempre uma última saída: “Morra agora e pague depois”! E há muito devedor que consegue viver bem com isso e, quando morrer, resolve a questão com um “Deus lhe pague” …                                                                             

Trazia “a fisga no bolso de trás” …

Quando andava na escola primária, o “ATL” onde passava a maior parte do tempo depois de sair das aulas era do tamanho da minha aldeia, onde tinha total liberdade para conhecer a natureza, o comportamento dos seres vivos que connosco habitam neste planeta e fabricar os meios para brincar e jogar, fosse à bilharda, à malha, ao peão, ao espeto, ao pica e outros mais. Além disso, ia à fruta, aos ninhos, ao rio Sousa tomar banho e ajudava o sr. Moura a plantar o cebolo e as batatas no quintal dos meus pais, sendo que cada coisa tinha o seu tempo. Mas tinha sempre de fazer a minha fisga, porque “um rapaz sem uma fisga não era ninguém”. A fisga servia para caçar pássaros, participar em torneios entre a miudagem, para ver quem acertava em mais latas e até como arma de defesa, porque não?

Havia dois requisitos fundamentais para construir uma boa fisga: as borrachas e a “forquilha”. As borrachas eram fundamentais porque, se não tivessem boa elasticidade, não atiravam bem, enquanto a “forquilha” exigia muito trabalho para ficar em condições. Conseguir borrachas não era fácil para a maior parte da malta. Eu tinha a sorte de poder recorrer ao meu pai ou ao meu irmão mais velho. Enquanto o primeiro me arranjava um pedaço de “câmara-de-ar” do pneu de um automóvel – coisa que os pneus modernos já não têm – o outro conseguia-me sempre um bocado de “câmara-de-ar” de bicicleta. Normalmente usava mais a borracha das bicicletas porque era mais fina e flexível, enquanto a do automóvel era mais difícil de esticar e exigia mais força. Para fazer a fisga, cortava duas tiras de borracha com 25 a 30 centímetros de comprimento e com cerca de 1,5 cm de largura, tendo o cuidado de as fazer a partir das partes melhores da “câmara-de-ar”, pois como eram pedaços de borracha descartada que já não servia, podia ter pontos mais frágeis que, aplicados na fisga, podiam romper ao fim de alguns disparos. Já a “forquilha” exigia que se procurasse nos carvalhos, oliveiras e castanheiros a ligação de dois ramos em forma de Y, por serem madeiras leves e duras, sendo normalmente a “pega” um pouco mais grossa do que as duas hastes onde prendiam as borrachas. Para preparar a “forquilha eu recorria quase sempre ao senhor Alberto “espingardeiro” onde, apesar da minha idade, gostava de prestar alguns pequenos serviços e aprender como era o caso de acender a forja, aquecer os ferros até ficarem em brasa para serem trabalhados ou polir algumas peças, pois ele tinha ferramentas adequadas para trabalhar madeira por forma a dar-lhe o acabamento que fizesse inveja aos outros. E, com a ajuda dessas ferramentas e de uma folha de lixa apropriada, a forquilha ficava macia como seda. Na parte superior de cada uma das hastes fazia um entalhe arredondado à volta para que, ao amarrar as borrachas, estas ficassem seguras e sem hipóteses de se soltarem, coisa que acontecia com outras feitas mais à pressa. Amarrava a ponta duma borracha a uma das hastes e a outra borracha à outra haste, com “fio norte encerado” que o senhor Pereira sapateiro usava para cozer o calçado, por ser mais resistente, e que eu conseguia por, às vezes, o ajudar a encerar fio. Para concluir a fisga e depois de amarrada cada tira a uma haste, na outra ponta das borrachas prendia um pedaço de couro relativamente fino, que o senhor Pereira também me dava já com o corte certo e dois rasgos onde entravam as borrachas antes de serem amarradas. Com a realização destas operações estava construída a fisga, que nalgumas regiões do nosso país é também conhecida por atiradeira. Finalmente, como munições, eram necessárias as indispensáveis pedras. E depois era só testar a “arma de arremesso”, colocando uma pequena pedra no meio do couro que se segurava com a mão esquerda, enquanto a mão direita agarrava firmemente a forquilha pela pega, esticando as borrachas até a tensão ser suficiente para fazer o arremesso. E os primeiros dias após a sua conclusão eram de certa euforia, fazendo com que, mal saísse da escola, ia treinar a pontaria apontando para um alvo improvisado. Confesso que nunca fui muito bom atirador e hoje gabo-me de nunca ter matado um pássaro sequer. E gabo-me, não porque na altura não quisesse matar, mas porque hoje acho que seria errado. Daquilo que lembro em particular, foi de fazer pontaria a um pardal que estava em cima da rede no quintal da minha avó e fiz um disparo tão bom que acertei … num vaso de barro que rachou ao meio. A fisga era um dos brinquedos populares entre a rapaziada do meu tempo de criança, sem dúvida, apesar de muitos miúdos terem grande dificuldade em conseguir as borrachas porque até as bicicletas eram muito poucas. Pela sua natureza, era um objeto que permitia projetar pequenas pedras a longa distância, com alguma precisão, dependendo da destreza do atirador. Era um forte complemento das aventuras e brincadeiras de criança, tendo um certo poder didático. Claro que às veze era usada com propósitos pouco recomendáveis, pois além de atirarem contra os pássaros, de modo especial a pardais e melros, os mais rebeldes usavam-nas também para algumas maldades como acertar na fruta dos vizinhos.                                                                              Mas, para além de tudo isso, tinha a componente didática com o envolvimento da criança na sua conceção e construção, num espírito de entreajuda e numa competição sadia que recordo com saudade, desenvolvendo em cada um de nós a criatividade, a responsabilidade e a vontade de fazer mais e melhor, tendo-me deixado lições para a vida. Mas a fisga passou à história tal como todos os brinquedos artesanais, hoje exibida como curiosidade do passado num ou outro museu regional, sem que as novas gerações se apercebam da sua importância na infância e adolescência de muitas outras 

Regras, leis, proibições e absurdos …

Dizem que somos “animais sociais” e, como tal temos necessidade de viver em sociedade, porque não conseguimos viver completamente sozinhos, isolados. Precisamos dos outros, quanto mais não seja para nos chatear. Mas, para que todos possamos viver em sociedade, é preciso que tenhamos consciência de que temos direitos e também deveres, de respeitar os outros e ser respeitados. Para tal, ao longo dos séculos houve necessidade de criar regras, normas e leis para definir os limites, onde as pessoas aceitem abrir mão de certas liberdades para formar uma sociedade civilizada, em que a liberdade de cada um termine onde começa a do outro. Essas regras, além de proibirem comportamentos nocivos, também estabelecem direitos e deveres, proporcionando um equilíbrio entre liberdade individual e segurança coletiva. Assim surgiram as sociedades onde a ordem e a segurança predominam, permitindo aos indivíduos viverem de forma mais pacífica. No entanto, à medida que as sociedades começaram a crescer e se desenvolver, as regras e leis também precisaram evoluir para se adequar a essa nova realidade. Se no princípio as regras eram diretrizes simples para manter a paz e harmonia entre os membros da comunidade, à medida que as sociedades se tornaram complexas, tornaram-se necessárias leis mais sofisticadas e abrangentes para regulamentar as diversas interações humanas e atender ao número crescente de conflitos potenciais a serem evitados ou resolvidos. Mas é importante estabelecer regras e cumpri-las, caso contrário não servirão para nada. E se é verdade que alguns países levam as regras muito a sério, outros há que nem tanto. A título de exemplo: se beber pode guiar? Em quase todo o mundo, não. No Brasil também não. Mas vendo bem, como o condutor não é obrigado a fazer o teste do álcool, então pode. A maior parte de regras como esta e não passar um sinal vermelho nem atirar lixo para o chão, são banais. No entanto, por esse mundo fora há regras e leis que, aos nossos olhos e hábitos, dão origem a proibições estranhas ou até absurdas. Vejamos: os suíços são muito zelosos na luta contra o ruído noturno. Daí que, a partir das 22 horas, é proibido descarregar o autoclismo, tal como é ilegal que um homem urine de pé durante a noite pois provoca ruído que os vizinhos não são obrigados a suportar. Até faz sentido a norma e devia ser imposta cá. Mas, se resolver fazer férias no Burundi e quiser correr em grupo, esqueça porque pode ir parar à prisão. O presidente do país proibiu as corridas em grupo com o argumento de que os participantes podem ser usados por pessoas que estejam a planear atividades subversivas contra o governo. Se lá for, corra sozinho para não ter as autoridades à perna! Já no Dubai, lembre-se que muitos casais estrangeiros foram presos por não cumprirem as normas ao beber álcool ou andar bêbado em público, dançar na rua e algumas demonstrações de afeto entre o casal como beijos ou mãos dadas, drogar-se e até amaldiçoar. Se gosta de cantar Karaoke, tenha muito cuidado nas Filipinas, onde levam isso muito a sério. Se desafinar ou cantar sem respeito por alguma canção, a coisa pode correr-lhe mal. E não tente cantar o My Way, de Frank Sinatra, para não aumentar o número já alto de assassinatos por causa da canção. Nisso de cantar, ou canta a sério ou não canta no Turquemenistão. O “playback” é proibido na TV e em eventos culturais, tal como a ópera e o ballet. Ambos são tidos por “desnecessários”. Os amantes da Coreia do Norte para viverem lá, têm de esquecer o uso de calças de ganga, saias compridas, sapatos compridos, T-shirts e certos cortes de cabelo, além dos piercings, para “prevenir a corrupção moral pública e evitar as tendências capitalistas”.                                                                                                            Se lhe passar pela cabeça de morrer no Reino Unido no interior do Parlamento, pode crer que não vai ter essa “sorte”, pois os contínuos retiram à pressa quem tenha um simples desmaio ou se sinta mal. É que morrer lá, dá direito a ser enterrado com todas as honras da coroa num funeral real. Se quer um funeral em grande, é o caminho! Em Singapura não use pastilha elástica e cumpra as regras a sério. Ou “está feito”! Em Eboli, na Itália, nada de dar beijos enquanto conduz, pois sai-lhe caro.                                                                                                Mas os Estados Unidos são o país rei das leis e proibições absurdas e, quando falamos de regras do trânsito, algumas roçam o ridículo. No Alabama, por exemplo, é proibido conduzir com os olhos fechados (eu já tentei aqui quando voltava para casa tarde da noite e cansado. Não é proibido, mas a coisa ia correndo mal). Mas, por incrível que pareça, já é autorizado conduzir em sentido contrário numa rua de sentido único, desde que tenha uma lanterna na frente do carro. As mulheres são discriminadas nalguns estados. Em Waynesboro (Virgínia), é ilegal que uma mulher possa conduzir por uma das ruas principais. Já no Tennesee, as mulheres podem conduzir um carro, desde que haja um homem a correr ou a caminhar à frente dela, agitando uma bandeira vermelha para avisar aos outros condutores e peões de que se aproxima. Em Portugal já vi uma coisa semelhante há muitos anos. Uma determinada mulher levava uma sobrinha com ela sempre que tinha de conduzir. Ao chegar a um cruzamento, a miúda saía para ver se vinha algum carro e só a mandava avançar quando não visse nenhum. Jogava pelo seguro …                                                       Na Califórnia, nenhum condutor pode saltar do seu carro quando este exceda as 65 milhas por hora (105 km/h), nem conduzir com uma bata vestida. Em Denver não se pode conduzir um automóvel negro aos domingos, enquanto na Geórgia não se pode cuspir de um carro em movimento ou dum autocarro, embora os condutores de camiões o possam fazer. Como os portugueses estão habituados a cuspir, julgo que também podem! E, finalmente, muita atenção. Se alguém deixar o seu elefante amarrado num parquímetro na Florida, tem de pagar a taxa de estacionamento como se de um carro se tratasse. Um último aviso: Se conduzir acompanhado de um gorila no Massachusetts, cuidado, pois a polícia pode multá-lo. Não sei se por pensarem que o gorila é quem vai a conduzir …

Uma Batalha épica, um Herói a sério, um esquecimento que não nos honra!

Como é possível serem os estrangeiros a colocar no topo dos grandes feitos da História a Batalha de Diu, entre portugueses e uma coligação de muçulmanos com apoio de Veneza, com uma estrondosa vitória dos nossos antepassados, enquanto nós, mudos e calados, ignoramos os nossos heróis a sério, talvez envergonhados de não os merecer e de nunca mais gerarmos quem sequer lhes chegue aos calcanhares? Foi uma vitória de aniquilamento total semelhante às batalhas de Lepanto, do Nilo, de Trafalgar e de Tsushima, assinalando o início do domínio europeu nos mares do Oriente e o recuo do poder muçulmano na Índia. O mundo académico questiona: o que são Leónidas ou o Almirante Nelson perto de Francisco Almeida? E onde está a merecida notoriedade deste homem?                                                                                                                  Dois anos após a chegada de Vasco da Gama à Índia, os portugueses já sabiam que era impossível comercializar ali tão pacatamente como em África, pela oposição das elites mercantes muçulmanas instaladas, que incitavam ataques contra feitorias, navios e agentes portugueses, sabotavam os seus esforços diplomáticos e incitavam o Samorim de Calecute a matá-los. Ao saber, o rei D. Manuel I nomeou D. Francisco de Almeida vice-rei da Índia, com ordens para proteger as feitorias portuguesas, combater a navegação hostil muçulmana, tendo partido de Lisboa em 1505 com seu filho Lourenço de Almeida. Os interesses instalados dos muçulmanos e venezianos eram a causa. Incapazes de se oporem aos portugueses, os mercadores muçulmanos na Índia e o Samorim de Calicute pediram ajuda ao Sultão do Egito, com grandes interesses no negócio das especiarias para a Europa. Veneza rompeu relações diplomáticas com Portugal e enviou um embaixador à corte egípcia propor “remédios rápidos e secretos” contra os portugueses. Assim, Veneza cedeu aos mamelucos naus e galés de guerra, para a expedição que incluía mamelucos, turcos, núbios, etíopes, artilheiros venezianos, tendo chegado a Diu em Setembro de 1507. Meliqueaz, governador de Diu, apesar das relações convenientes com Portugal, aceitou colaborar com Mirocem, comandante da coligação. Em Março de 1508, esta atacou uma frota portuguesa comandada por Lourenço de Almeida, de 150 homens. Apanhado desprevenido por confundir os navios inimigos com os de Afonso de Albuquerque, a vitória pendeu para os muçulmanos que perderam 700 dos seus 800 homens, tendo morrido 70 portugueses. D. Lourenço morreu e o corpo nunca foi encontrado. Ao saber da morte do seu único filho, D. Francisco de Almeida revoltou- se e prometeu vingar-se, tendo dito, supostamente, que “quem comeu o frango, há-de comer o galo ou pagá-lo.” Quando estava a partir, em 6 de dezembro de 1508, chegou Afonso de Albuquerque com ordens do rei D. Manuel para substituí-lo como governador. Mas a intenção de destruir a frota muçulmana tornou-se uma questão pessoal e recusou que o sucessor nomeado tomasse posse. Ao fazê-lo, estava em rebelião oficial contra o rei. A 9 de dezembro, a frota saiu de Cochim rumo a Diu, indo por Calecute, Baticala, Onor, Chaul e Bombaim. Aqui, Francisco recebeu carta de Meliqueaz a querer apaziguar o vice-rei, dizendo que entregaria os prisioneiros e que seu filho havia combatido dignamente. O vice-rei respondeu a Meliqueaz em tom respeitoso, mas ameaçador: “Eu o vice-rei, digo-te honrado Meliquaz, capitão de Diu, que vou com os meus cavaleiros à tua cidade, lançar a gente que aí se acolheu depois de pelejarem em Chaul com a minha gente e mataram um homem que se chamava meu filho; e venho com esperança de Deus do Céu tomar deles vingança e de quem os ajudar; e se a eles não achar não me fugirá a tua cidade, que tudo me pagará, e tu, pela boa ajuda que foste fazer a Chaul; e que tudo te faço saber para que estejas bem preparado para quando eu chegar, porque vou de caminho …”                                                                                                              A 2 de fevereiro de 1509, os portugueses avistaram Diu. Tinham 18 embarcações e 1000 a 1500 homens. À espera estava a armada da coligação com 120 a 200 embarcações e cerca de 5000 homens. Às 11 horas da manhã do dia 3, a bandeira real foi içada e um único tiro deu início à batalha. Um bombardeio geral entre as duas forças precedeu o combate e os portugueses usaram tática inovadora de artilharia ao disparar tiros rasantes com as balas a ricochetear nas águas, como pedras. A Santo Espírito afundou logo um dos navios muçulmanos. A nau capitânia egípcia acabou por ser tomada depois de escaramuças. Mirocem manteve os navios de remo dentro do canal para atacar os portugueses por trás, mas João da Nova percebeu e bloqueou o canal com a Flor do Mar, impedindo a saída dos navios, que passaram a ser um alvo ideal para os artilheiros da Flor do Mar que disparou mais de 600 tiros. Os portugueses dominaram todos os barcos. As caravelas colocaram-se entre os navios e a costa, matando todos os guerreiros muçulmanos que tentavam alcançar a margem e afundaram a última nau ao anoitecer, dando-se por finda a Batalha de Diu, que se saldou numa vitória retumbante dos portugueses. Meliqueaz devolveu os prisioneiros de Chaul e Almeida recusou-se a apossar-se de Diu, mas obteve dos mercadores que financiaram os muçulmanos uma quantia avultada em ouro. O aniquilamento foi total ao ordenar que fossem todos enforcados, queimados vivos, despedaçados ou amarrados às bocas dos canhões, em retaliação pela morte do filho. Após a batalha, Almeida relatou ao rei D. Manuel: “Enquanto fores poderoso no mar, manterás a Índia como tua; se não possuíres este poder, pouco te servirá uma fortaleza na costa.” Em novembro de 1509, entregou a Afonso de Albuquerque o governo da Índia e partiu para Portugal. Não chegaria ao destino, morto numa escaramuça no Cabo.                                                                                             A Batalha de Diu é tida como uma das batalhas mais importantes da História. No seu livro 50 Battles That Changed the World, William Weir classifica-a como a 6ª mais importante da História. E diz mesmo: “Quando o séc. XV começou, o Islão parecia pronto a dominar o mundo. Tal perspetiva afundou-se no Oceano Índico ao largo de Diu”. Almeida, ao aniquilar a frota muçulmana, não só vingou o filho, como foi responsável pela criação do primeiro Império global da História e ensinou a Europa qual o caminho para o topo do mundo: o poder marítimo. Tudo isso na decisiva Batalha de Diu. A partir daí, Portugal dominaria a maior parte do comércio oriental, destruiria a antiga rota da seda, levaria Veneza e dezenas de estados islâmicos à falência e tornar-se-ia na primeira superpotência. Os muçulmanos que viam o mundo afundar, acreditavam que a vitória portuguesa só podia ser por vontade de Deus e não havia nada a fazer. Porque ignoramos esta página nobre da nossa História? Porque esquecemos esse Herói, cuja memória deveria ser imortal, ao levar este pequeno país ao estatuto de potência global? Provavelmente, não somos mesmo dignos dele e de todos os seus Homens …