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Justiça com compaixão e humanidade

O ritmo dos dias e desta vida agitada em que toda a gente tem pressa e o tempo lhe falta porque acha que tem de fazer tudo e mais alguma coisa, leva-nos a ter de acompanhar a passada da tecnologia e, muitas vezes, a cumprir regras e tarefas esquecendo que estamos a lidar com pessoas que têm problemas diversos como todos nós. E, nessa forma de agir, desumanizamo-nos. Mas, de vez em quando, surge no meio da multidão alguém que se levanta acima do cidadão comum e age como ser humano que se interessa verdadeiramente pelos outros. Imaginemos um juiz que, diante de cada caso, não veja somente números, infrações e a lei, mas histórias de vida. Alguém que, em vez de aplicar a lei friamente, ouvia, sorria, aconselhava e até perdoava. É real, esse juiz existiu e o mundo conheceu-o como Juiz Frank Caprio, “o juiz mais gentil do mundo” e morreu há poucos dias, conhecido mundialmente pela capacidade de unir Justiça com Misericórdia. Aos 88 anos, a sua partida não deixou apenas uma cidade de luto, Providence, nos Estados Unidos, mas milhões de pessoas que se reviam na sua forma humana e compassiva de lidar com a lei. Uma das histórias mais marcantes foi a de um homem de 96 anos que levou uma multa por excesso de velocidade. O senhor Coella contou ao juiz que seguia devagar e estava a levar o filho deficiente a exames ao sangue relacionados com tratamentos oncológicos. O juiz, visivelmente emocionado, elogiou aquele pai pela sua dedicação e compromisso com a família apesar da sua idade avançada, livrando-o da acusação. 

Amado pela sua compaixão, humildade e crença inabalável na bondade das pessoas, o juiz Caprio tocou a vida de milhões de pessoas através do seu trabalho no tribunal e fora dele. O seu calor, humor e gentileza deixaram uma marca em todos aqueles que o conheceram. Como juiz no Tribunal Municipal de Providence, julgava infrações de trânsito e pequenos crimes de reduzido potencial ofensivo, mas a sua forma “menos institucional” de resolver os seus processos teve tal repercussão que o seu irmão começou a filmar as sessões no tribunal para mais tarde serem transmitidas em programa televisivo regional e depois nacional e mundial e, daí, saltarem para as redes sociais, tendo feito dele uma celebridade.                                    São inúmeros os casos de decisões “fora da caixa”, que sensibilizam: A um homem de meia-idade acusado de estacionar mal o carro e não pagar a multa, o juiz perguntou quem era a criança que estava com ele, tendo-lhe ele dito que era o seu filho Jacob. Então o juiz chamou-o: “Olha Jacob, vem daí ajudar-me com este caso porque estou com dificuldades em resolvê-lo”. E sentou o rapaz loirinho, de cinco anos, perto de si, dizendo-lhe: “Tenho três opções: multar o teu pai em 90 dólares, 3º dólares ou não o multar. O que devo fazer”? O miúdo decidiu-se pelos 30 dólares. Mas o juiz teve outra ideia: “Vou fazer um acordo com o teu pai: se ele te levar a tomar um bom pequeno-almoço eu deixo cair a multa”. E assim ficou. Noutro caso de um condutor apanhado em excesso de velocidade, ao perguntar ao filho do acusado se o pai era culpado ou inocente, o miúdo respondeu com um “culpado”, mas o juiz foi pela outra sugestão. Já uma mulher acusada de várias infrações de trânsito seguidas, justificou-se dizendo que teve de passar vários sinais vermelhos porque estava a ser perseguida por uma pessoa de quem era vítima de violência doméstica. Então, Caprio disse que recebia com frequência cheques de pessoas anónimas para ajudar outras pessoas e passou-lhe três deles, tendo ela agradecido e perguntado se lhe podia dar um abraço, ao que ele anuiu.     Num dos episódios mais conhecidos mostra Caprio diante de uma mãe que acumulava multas porque precisava levar os filhos à escola em horários difíceis. Em vez de condená-la, ele compreendeu a situação, reduziu a penalidade e, com palavras de incentivo, ofereceu algo muito maior do que a anulação de uma dívida: ofereceu dignidade. Casos como este tornaram-se marcas do seu legado.

A história de Frank Caprio mostra que ser autoridade não tem de significar distância ou frieza. Em vez disso, ele ouvia as histórias, considerava as dificuldades pessoais e avaliava cada situação com olhar humano. Pelo contrário: ele demonstrou que a autoridade verdadeira é aquela que se aproxima, que escuta, que é capaz de se ajoelhar diante da fragilidade humana. Seus vídeos continuarão a ser vistos pelas novas gerações que talvez nunca tenham entrado num tribunal, mas que aprendem e aprenderão com ele, que a justiça mais transformadora nasce da compaixão. Num mundo marcado por discursos duros, ódios, divisões e intolerância, Caprio destacou-se justamente por escolher outro caminho. A sua simplicidade, o seu jeito de falar com crianças, idosos, mães de família ou trabalhadores comuns revelava uma grande lição: a lei deve servir ao ser humano e não o contrário.

Na lógica fria da lei, uma multa pode parecer apenas um número. Mas na lógica da compaixão, cada caso tem rosto, nome e história. Caprio entendia isso e mostrava ao mundo que justiça e misericórdia não são conceitos opostos. Pelo contrário: quando caminham juntos, revelam a grandeza da verdadeira humanidade.

Avós: O último recurso, mas …

Joana e o marido estão reformados há mais de uma década e ambos estão muito perto dos oitenta anos de idade, a gozar uma merecida reforma na sua moradia. São avós, ele dedica-se ao jardim, ao quintal e ao serviço de manutenção da casa e ela à cozinha e ao lar. E ao neto. Logo de manhã, bem cedo, chega a filha de carro com a criança ainda de pijama e a avó já tem preparado o pequeno-almoço para os dois, o almoço para a filha levar e a cama para o neto acabar de dormir um sono que lhe foi interrompido. Durante o dia aquela avó tem quase todo o seu tempo dedicado ao pequenote, como cuidadora a tempo inteiro. Ao fim da tarde, já com o neto de barriga cheia, volta a filha do trabalho para levar o miúdo para casa já com o pijama vestido e o jantar para si e para o marido. E este ciclo repete-se nos dias seguintes, nos outros dias da semana, dos meses e de anos. 

A incorporação efetiva da mulher no mercado de trabalho para sua autorrealização e, claro, para melhorar o orçamento de casa, gerou uma série de necessidades no contexto familiar, tanto afetivo quanto de responsabilidade em relação às crianças. Com esta nova estrutura familiar, os avós passaram a ter o papel de cuidadores e, muito mais, pois assumem o papel principal no desenvolvimento pessoal e emocional dos netos. Eles chegam ao mesmo nível dos próprios pais e o seu apoio é fundamental para o funcionamento da sociedade. São uma figura comum na porta das escolas e nos parques de todas as vilas e cidades. Cuidam de seus netos durante muitas horas enquanto os pais trabalham. A impossibilidade de conciliar a vida familiar com o horário de trabalho ligada à falta de recursos e de assistência social para as crianças, levam as famílias a contar com os avós como uma rede de apoio, a mais importante para cuidar dos netos.

Mas a utilização deste “recurso” para resolver uma necessidade da família, pode trazer problemas que importa salvaguardar e clarificar desde o princípio, para que não haja mais prejuízos do que vantagens que, quase sempre, não são previamente ponderadas. O aumento da esperança de vida e o envelhecimento ativo, fazem com que os idosos tenham uma qualidade de vida cada vez melhor. Ora, avós autónomos que convivem, viajam e têm vida própria, poderão ter dificuldades de assumir a função de cuidar dos netos a tempo inteiro e abdicar de ter vida própria. Culturalmente ainda são vistos como egoístas, ao dar prioridade ao seu conforto e bem-estar em detrimento dos filhos. É uma avaliação injusta, pois quem o faz defende o seu direito a uma velhice digna e saudável e a poder usufruir do tempo extra que o ter de não trabalhar lhe proporciona. Claro que a melhor alternativa será um meio caminho, em que as pessoas mais velhas possam desfrutar da autonomia, do seu tempo e da saúde que possuem e também possam, de forma razoável, ser um apoio para os filhos. Mas, em muitos casos, não há esse equilíbrio.                                                                                              A sabedoria popular já dizia: “ser avó é ser mãe duas vezes”. Cada avó ou avô tem seu jeito de lidar com os netos e preservar e fortalecer a relação é muito positivo e benéfico para os dois lados!  Avós e netos fazem uma combinação perfeita em qualquer dia, qualquer hora ou qualquer época do ano. Quem não tem boas recordações dessa convivência? Avós “são pais com açúcar”, como também se diz que os avós que ajudam a criar os netos vivem mais tempo do que os que não têm intervenção na rotina das crianças. Por isso mesmo, para eles também é importante essa função de cuidador. Da mesma forma que a criança toma os pais como exemplo de comportamento e conduta, também se espelhará nos avós. Contudo, há quem garanta que a convivência entre avós e netos pode não ser tão boa quanto isso, porque os estragam com mimos e falta de regras em vez de ajudarem os pais na difícil tarefa de educá-los.                                                                                                                                                     O papel dos avós na educação dos netos é fundamental, pois, além da vasta experiência vivida, eles terão a oportunidade de transmitir valores que as crianças em desenvolvimento precisam. E a criança que tem a avó ou o avô por perto, crescerá com uma base emocional muito boa e forte, muito especialmente com os avós que gostam de compartilhar experiências. Mas, apesar dessa importância, nem todos os avós são muito felizes por passarem a maior parte do seu tempo a tomar conta deles. E, por maior que seja a valia, é importante que os avós sintam que dispõem de tempo de qualidade para eles, pois cuidar dos netos ocasionalmente é diferente de virar cuidador principal. O problema está em encontrar a medida exata para não abdicar da sua autonomia e até de não entrar em conflito com os filhos na educação dos netos, já que a responsabilidade da educação das crianças é deles. Tirando isso, o bom relacionamento entre pais e avós e entre avós e netos, só traz vantagens a toda a família, inclusive aos próprios avós que ficam mais ativos, física e psicologicamente, sentindo-se melhor e mais uteis.                                                              Como conciliar que as pessoas mais velhas possam desfrutar da sua autonomia, do seu tempo e da saúde que possuem e também, de forma razoável, possam ser um ponto de apoio para os seus filhos? É nesse equilíbrio que está o segredo para o protagonismo dos avós na educação dos netos num tempo em que, longe de diminuir a necessidade dessa ajuda, é cada vez maior e a sua ajuda para os pais tem um valor incalculável. E por isso, todos nós enquanto sociedade, lhes devemos muito …                                                

A “criação” vai engolir o criador?

Como se diz na gíria popular, “estou feito”. A minha carreira como “escrevinhador” de algumas ideias que me passam pela cabeça está a chegar ao fim, pois vou ser despedido um dia destes, sem apelo nem agravo e sem direito a indemnização. A direção do TVS ainda não me comunicou, mas eu já estou preparado para ser “posto no olho da rua” e ser substituído pela “criação” digital, a Inteligência Artificial, mais conhecida por IA, pois esta é uma das primeiras profissões a desaparecer com o seu desenvolvimento. E, como a IA é a tecnologia que mais rapidamente se espalhou pelo mundo, os meus dias de “escrevinhador” estão contados. Dizem os especialistas que no topo da lista das profissões em risco de desaparecimento encontram-se os escritores e autores, só superados pelos intérpretes e tradutores, seguidas pelos jornalistas e repórteres, editores, analistas de dados, especialistas em relações públicas e matemáticos, além dos trabalhadores de “cal centre” e dos assistentes jurídicos. Podem dormir descansados os canalizadores porque esta tecnologia não lhes faz concorrência. Mas também como já é tão difícil arranjar um para reparar o autoclismo …. Ora, como consequência desta coisa a que ainda não me habituei, as minhas condições de vida vão piorar, não propriamente ao nível económico porque os ganhos que tive ao longo desta jornada não passaram do amável convite para o jantar de aniversário do Jornal, mas ao nível do mediatismo e reconhecimento público que faz inveja ao Cristiano Ronaldo …

Bom, esquecendo este aparte, a IA é uma realidade que está a entrar nas nossas vidas de forma acelerada e a maioria das pessoas ainda não sabe, nem sequer se apercebeu, das consequências que pode vir a ter nas suas vidas e do quanto vai passar a fazer parte delas. Depois do aparecimento da internet, esta é uma nova revolução de que se desconhecem os limites. Mas, afinal, o que é a IA? A Inteligência Artificial é a utilização de tecnologias digitais para criar sistemas capazes de realizar tarefas que geralmente exigem intervenção humana. A IA processa a informação de forma mais rápida e exata. Pode-se dizer que a IA é uma ferramenta extraordinária quando é utilizada para bem da humanidade, tendo o seu aparecimento sido comparável ao do fogo. No entanto, sabe-se que, para além do elevado número de empregos que pode extinguir, comporta riscos muito grandes para a sociedade, ao ponto de Geoffrey Hinton, considerado o “padrinho” da inteligência artificial (IA), se ter despedido do seu trabalho na Google para poder alertar e fazer campanha para os perigos desta nova tecnologia. Ao aumentar a eficiência, automatizar as tarefas e oferecer soluções inovadoras, a inteligência artificial está a transformar a sociedade, as indústrias e os modelos de negócio, aumentando a produtividade, reduzindo os erros humanos e os custos, analisando dados em larga escala que permitem melhoria na tomada de decisões e com um aumento significativo da segurança. Mas a primeira consequência negativa é que está a colocar em risco muitas profissões, especialmente as intelectuais e que tenham a ver com a língua e a matemática. Pelo contrário, para já, as profissões que exigem uma presença física, trabalho manual ou interação humana direta são seguras, como os auxiliares de enfermagem, massagistas, operadores de máquinas, empregadas domésticas e outras. Mas também essas virão a ter problemas, é só uma questão de tempo. Por exemplo, a IA pode analisar imagens médicas rapidamente e sugerir diagnósticos, que os médicos confirmarão ou rejeitam com base nos seus conhecimentos especializados. Mas, com o passar do tempo e mais exemplos e mais retornos de informação, a IA aperfeiçoa a capacidade de detetar doenças com precisão, tal como acontece com os médicos. E o mesmo se passa na indústria transformadora ao otimizar os recursos, aumentar a produtividade e reduzir o impacto ambiental das empresas, tal como na educação e muitas outras áreas.

Mas existe o outro lado da “moeda”, os riscos para a sociedade que se imaginam e vão confirmando, mais aqueles que só o tempo nos dará a conhecer. Para já, traz a discriminação com base no género, raça, situação socioeconómica ou comportamento passado, a intromissão na vida privada, manipulação de formas de pensar, dilemas éticos e muitos outros. Mais ainda, os sistemas avançados de IA podem não estar alinhados com os valores ou prioridades humanas. Geoffrey Hinton alertou que “A sobrevivência da humanidade está ameaçada quando “coisas inteligentes nos podem enganar”.

Os filmes de ficção retratam a IA em cenários futuristas onde esta começa a pensar por si mesma, supera os humanos e derruba a sociedade. Mas o curioso, e perigoso, é que a realidade já persegue a ficção e a IA já chegou ao ponto de pensar por si mesma, pois quanto mais perguntas lhe fizerem, mais dados recolhe e mais “inteligente” fica. É o caso do ChatGPT que, quando lhe fazem uma pergunta para a qual não tem resposta, como não admite não a saber, inventa uma. Da mesma forma todos sabemos que não se pode confiar em tudo o que se lê na Internet, pois a arte gerada intensifica essa desconfiança. Por isso, não podemos confiar em tudo o que ali se vê.  Todos sabemos que há a manipulação digital de uma foto ou vídeo para retratar um evento que nunca aconteceu ou retratar uma pessoa fazendo ou dizendo algo que nunca fez ou disse. A arte gerada por IA, cria novas imagens usando uma compilação de trabalhos publicados na Internet para atender a um comando específico. Hoje, compartilhar um artigo de “notícias” com seus seguidores nas redes sociais ou divulgá-lo para outras pessoas sem garantir a veracidade é um risco. O mesmo se passa com o uso da voz. Mas quando a IA chega ao ponto de procurar saber das relações extraconjugais dos seus responsáveis e faz chantagem com eles, algo começa a passar dos limites e a criação a querer dominar o criador, o que, nestes casos, é inaceitável de todas as formas. E o certo é que não ficaremos por aqui … 

Até por sete palmos de terra …

Dos sete filhos daquela senhora que enviuvara muito cedo e tudo fizera para os criar com dignidade, só a Maria deixou o emprego para se dedicar à mãe a tempo inteiro quando lhe foi diagnosticada uma doença grave. E, apesar da sua fraca condição económica, assistiu-a na doença e dela cuidou com uma dedicação inexcedível e um amor infinito, suavizando-lhe o sofrimento durante os poucos anos que ainda viveu. Dos outros filhos? Algumas visitas esporádicas para não parecer tão mal, embora breves, talvez “para não pegarem a doença”. A mãe foi a enterrar em campa rasa própria e, a partir desse dia e até hoje, ao longo de mais de vinte e cinco anos, tem sido exclusivamente aquela filha Maria que dela cuida e enfeita com flores. E semana após semana, mês após mês, ano após ano, sempre que consegue usando flores oferecidas e, quando não, compra-as com algum dinheiro do seu parco salário. Nunca confrontou nenhum dos outros filhos com o dever que também lhes é devido de homenagear a mãe, nem deles exigiu o que quer que seja para o efeito. E esta mulher, que carrega sozinha esta “empreitada”, sem qualquer proveito pessoal a não ser a satisfação do dever cumprido para com quem a “trouxe ao mundo”, ao fim de vinte e cinco anos foi questionada e confrontada por alguns deles, acusando-a de se ter apoderado pessoalmente da campa como se a tivesse roubado, quando afinal o título daquela “propriedade” está, e sempre esteve, na posse de um dos irmãos e é a prova de que pertencia à mãe e, agora, a todos os sete filhos, mesmo que dela não tenham cuidado. Desolada, desabafava comigo por não compreender como era possível que ao fim de tantos anos, irmãos e irmãs, sangue do mesmo sangue, tenham levantado suspeitas sobre a honestidade dela e insinuar que os seus interesses seriam outros que não os de “cuidar da campa da mãe” desinteressadamente. Conhecendo bem como conheço este caso, diria que, se os irmãos e irmãs da Maria tivessem “um pingo de vergonha”, “enfiavam a viola no saco” e só teriam de dar graças à Maria, em vez de a querer crucificar na praça pública ao inventarem “segundas intenções” que ela nunca teve, ainda por cima acerca de “uma propriedade” da qual não se colhe rendimento algum. No caso dela, só lhe tem dado responsabilidades, canseiras e despesas, de que todos os outros se demitiram. Talvez as insinuações deles não sejam senão uma forma de querer aliviar o seu sentimento de culpa por nada terem feito pela mãe. É o habitual!

Se uma situação destas se passa em relação à propriedade de uma simples campa, que nunca chegou a ser promovida a jazigo, é caso para nos questionarmos sobre o que se passa por aí quando se trata de heranças e partilhas, e as guerras miseráveis que os herdeiros, antes familiares e depois beligerantes e inimigos figadais fazem entre si, como se de uma batalha se tratasse. E trata. Porque está em causa a disputa pelo melhor e maior bocado, sem respeito pelos direitos dos outros, tal como os chacais e abutres o fazem. Só que estes, são frontais. 

Conheço bastantes casos de lutas judiciais e até físicas, por pequenos e grandes legados, que só desprestigiam os seres humanos. Felizes são os animais ditos irracionais, que não esperam nada. Se os pais antes de morrer soubessem os problemas e divisões que a herança iria provocar depois de mortos, especialmente quando se trata dos filhos, muitos deles deixavam-lhes somente uma marreta e um monte de pedras bem duras para partirem aos bocados quando quisessem libertar a sua frustração. Quando sete filhos se juntam, dias depois da mãe ser enterrada, sendo que seis deles nunca a visitaram nos anos que esteve num lar, para saberem “o que sobrou” e descobrem que só “restaram uns brincos”, a forma de resolver quem os apanhava foi à sapatada uns aos outros. Seis mereciam ter “levado no focinho” e os brincos deviam ser entregues à filha que sempre visitou a mãe. Mas a partilha não é feita pelo mérito filial ou sentimental, nem pela maior ou menor dedicação à mãe … 

Já fiz avaliações de propriedades para efeitos de partilhas, com mais ou menos bens, e o sentimento que guardo de umas quantas é de que parte dos interessados, apesar de estar a receber riqueza para a qual não contribuiu nada, nunca ficaram satisfeitos com o quinhão que lhes tocou. Mais grave ainda é quando todos os herdeiros concordam que os lotes sejam feitos por avaliador independente, quando depois todos concordam que os lotes estão equilibrados e que a definição do lote que toca a cada um seja feita por sorteio e depois de tirarem à sorte um número que correspondente ao seu lote, quem não aceite o que lhe saiu porque acha que é o mais fraco, que vale menos ou que tem outro defeito qualquer. Porquê? É que, na sua cabeça, permanece sempre a dúvida de que pode estar a ser prejudicado na divisão dos bens, pelo que os bocados que tocaram aos outros vão parecer-lhe sempre que são melhores que o seu. E aí começam as guerras …

Felizes são os animais de estimação pois, à morte do seu dono, não esperam receber nada e só lhes fica a saudade … 

A felicidade nas pequenas coisas

Entre as pesquisas mais comuns feitas pelos usuários do Google há uma que se revela habitual: “Como ser feliz?” Porque, na verdade, nós estamos constantemente em busca da felicidade, procurando-a num relacionamento, numa carreira de sucesso, numa conquista, nas pequenas ou em grandes coisas, nos lugares certos e nos errados. Em regra, achamos que a felicidade anda sempre a reboque de uma condição económica boa e, por isso, fazemos tudo para “subir na vida, acumular riquezas e conquistar o poder, como certidão de garantia para se atingir essa tal felicidade. Mas o certo é que, se o dinheiro e o poder podem comprar muita coisa, facilitando (ou complicando) a vida, quase sempre estão longe de poder comprar a felicidade, pois essa não está à venda. Tem de se ganhar sem necessariamente ter em mão esses atributos. Se assim fosse, a maioria das pessoas de hoje era feliz se comparar o seu nível de vida com aquele que os portugueses tinham quando eu era criança.

Pensando bem, existe um mistério que não sei explicar quanto a esta questão. Nesse tempo distante, a maioria das pessoas era pobre, mas aquilo que se pode dizer verdadeiramente pobres. Quase nada tinham para comer e vestir. E para calçar? Na minha escola iam quase todos descalços, sendo eu um “privilegiado” ao ir de “chancas”, feitas com “sola” de madeira e couro duro na parte superior. Comia-se caldo mal adubado e broa, dia sim, dia sim, melhorando ao domingo com algum “presigo”. As calças duravam até já não se poderem remendar mais. As crianças não tinham brinquedos. Melhor, inventavam os seus brinquedos. Quando conseguia uma meia velha lá em casa, tínhamos bola ao enchê-la com trapos, porque uma bola de borracha era um luxo muito raro e só para alguns. E mesmo assim, os jogos com essa bola de trapos jogados num caminho de terra irregular, tinham uma alegria genuína e ficaram gravados nos nossos corações. Jogar ao peão, ao espeto ou ao “pica”, eram uma diversão constante, tal como passear livremente pelos campos e montes onde havia sempre algo para descobrir. Fomos crianças ricas e felizes, sem dinheiro nenhum. E ao olhar as crianças de hoje, que têm tudo o que pediram e até o que não pediram, que têm tudo o que precisam e daquilo que nunca vão precisar, porque será que são permanentemente insatisfeitas? 

Enquanto antigamente “qualquer coisa” para comer era uma festa e não havia “não gosto”, hoje os pais veem-se e desejam-se para saber o que é que as crianças estão dispostas a comer pois apesar das muitas possibilidades, só querem o que lhes apetece. Mas o mesmo dilema se passa com os adultos obcecados em terem o que mais ninguém tem ou que só é acessível a alguns. Antes, as mulheres iam lavar a roupa numa presa de água, fizesse frio ou calor, e cantavam enquanto lavavam ou estendiam a roupa na erva. Iam sachar o milho em magotes, a troco de uma merenda, e passavam o dia a cantar. E a cantar faziam as desfolhadas, as novenas e até ao anoitecer à porta das casas humildes quando se juntavam três ou quatro vizinhas. Já a caminho das romarias iam a cantar e a dançar. Hoje alguém canta no trabalho? Que se saiba, a cantoria mais comum é uma insatisfação permanente com o custo de vida, a falta de tempo, a pressa para tudo acabando por se andar sempre atrasado, uma correria constante sem se saber bem para onde corremos. Porque achamos que só seremos felizes quando tivermos aquilo que não temos. Mas quem só será feliz com o que não tem, será feliz algum dia?

Hoje temos automóveis com que nem sequer sonhávamos nos nossos melhores sonhos e estamos insatisfeitos porque queremos um carro igual ou melhor do que o vizinho, o amigo ou um familiar! Temos os armários a abarrotar de roupa e há quem se arrogue em verbalizar “não tenho que vestir”, como se isso seja um drama, sem respeito por quem viveu, e vive, sem nada. Quem não é feliz com o que tem, não consegue ser feliz com coisa nenhuma. A insatisfação é permanente.

Ao olhar para trás não posso deixar de reconhecer que os momentos de felicidade mais preciosos não foram as grandes conquistas, mas as pequenas coisas, muitas vezes tidas como triviais ou normais, mas que nos encheram o coração. Não foram os mais ricos e nem sequer os mais poderosos onde encontrei as pessoas mais genuinamente felizes. Pelo contrário, foi sempre entre os pobres, porque sabiam valorizar cada pequena coisa que tinham, fosse um bem material ou virtual. 

Há poucos dias contava-me um amigo que não fora trabalhar porque teve de ficar em casa a tomar conta dos seus dois filhos menores, algo que faz sempre com muito prazer apesar de, pela sua traquinice, não ser fácil. E, depois de conseguir que ficassem tranquilos a fazer cada um deles uma tarefa, dedicou-se a fazer o almoço pois a mulher estava a trabalhar. Enquanto cozinhava, abriu uma garrafa de vinho e foi saboreando, observando os filhos e dando atenção ao cozinhado, num momento perfeito de felicidade que diz não ter preço. Não sei porquê, mas enquanto ele me descrevia os pormenores desse seu momento, como em replay, relembrei-me dos muitos instantes em que ia deitar a Luísa e, ao retirá-la da cadeira de rodas, quando a levantava ela dava-me sempre um abraço e dizia “Obrigada”. Depois, sentava-a na cama e rodava-a enquanto a ia deitando, cobrindo-a como ela gostava. E então quase sempre me brindava com um “gosto muito de ti. És muito meu amigo”. E esses gestos e palavras tão simples, proporcionaram-me momentos únicos …    

A expressão “a felicidade está nas coisas simples da vida” é a forma de dizer que ela não está em bens materiais, conquistas grandiosas ou eventos extraordinários, mas sim na apreciação dos momentos cotidianos e das pequenas coisas que nos rodeiam. É um convite a buscar a satisfação em momentos simples, como um abraço, um pôr do sol ou a companhia de alguém que amamos. Por isso, seria bom não perdermos a vida buscando por algo que já temos, só que ainda não demos conta …

A moda, os desfiles e eu. Ou não?

Ora, não sendo eu um apreciador da moda, sempre que sei e posso, gosto de ver o desfile da Victoria’s Secret. Não por usar lingerie, nem pelo balançar do traseiro das esguias modelos da casa, mas, “porque sim”. Só não consegui ver em direto porque a internet veio abaixo de tão sobrecarregada! E vá-se lá imaginar porquê! Também fiquei sem saber se essa visualização intensa foi maior por parte das mulheres, para estarem a par das últimas tendências da moda, ou dos homens, não com as mesmas intenções de interesse em relação à lingerie – a não ser, eventualmente, para ficarem a saber como a retirar mais depressa – muito mais interessados em apreciar a “paisagem” que é sempre agradável à vista. Por essa “capacidade de atração”, por ser “politicamente correto” e inclusivo, a marca, além dos seus “anjos”, fez desfilar ainda gente mais madura, como a cinquentonas Carla Bruni, Eva Herzigova e Kate Moss e, no final, a quase octogenária, Cher. É que, para dar resposta às críticas de que são alvo as grandes marcas nos últimos tempos por só fazerem desfilar na passerelle as chamadas “boazonas”, discriminando as baixinhas, fortes, gordas, deficientes, feias, narigudas, lésbicas, transexuais, travestis, gênero neutro e outras, passaram a incluir no “cardápio” todos os tipos de mulheres que, bem vistas as coisas, são a maioria. Por isso, hoje todas as boas marcas aderiram à chamada “inclusão” e metem nos desfiles gente que outrora nunca desfilaria, a meias com as tais “boazonas que são sempre a atração principal. Todas estas inclusões no mundo das passerelles, deram-me uma ideia: agora que eu estou reformado e afastado da vida ativa, pensei que poderia candidatar-me a modelo “inclusivo”, embora não seja um desejo íntimo. Se é pela idade, a Cher está praticamente no mesmo patamar etário, tal como umas quantas mais que se têm divertido nos últimos desfiles de moda. Porque não eu? Também tenho o direito a divertir-me. E aquele meio parece ser bom para isso. Sei que não tenho prática nenhuma destas andanças, mas tudo isso se aprende, haja vontade e estímulo. Não faltam para aí escolas de modelos, formações, cursos “on line” e estamos sempre a tempo, como o fez a sul coreana Choi Soon Hwa. Trabalhou como auxiliar de ação médica durante muitos anos até que, quando já tinha 72 anos, uma doente lhe disse que tinha todas as condições para ganhar a vida como modelo. E foi assim que passou a praticar em casa a arte de desfilar na passerelle, sozinha e sem ter nenhuma orientação particular de profissionais. Já tinha 80 anos quando se candidatou e foi aceite no Concurso Miss Universo da Coreia do Sul, aproveitando o facto de terem acabado com o limite máximo de idade para participar, até aos 28 anos, e com o não acesso a mães solteiras. Surpreendentemente, ganhou o prémio de melhor vestido. No meu caso, ninguém me disse que tenho condições para ganhar a vida ou divertir-me como modelo e podem também ficar descansados que não vou ganhar o prémio do melhor vestido …

Sei bem que os desfiles femininos são mais apelativos “à vista” do que os masculinos e têm muito mais mercado. Se têm! Tal como não me parece que as modelos “inclusivas” tenham a capacidade de atração de outras, como os “anjos” da Victoria’s Secret, e não só para homens.

Vou ter de aprender a movimentar o corpo e a posar, pelo que tenho de me inspirar no portfólio dos consagrados e nos tipos de poses de modelos masculinos que ficam ótimas e funcionam bem. Caminhar encarando a câmera, como se fosse apanhado de surpresa ou desviar o olhar, com passada vigorosa, alongando o pescoço e com o queixo para a frente, é das situações mais comuns que preciso treinar. Além disso, tenho de praticar os outros tipos de pose: na ação, relaxada, do olhar, do sorriso, das mãos, do estilo livre, dramático, sexy e sensual e a pose do casal a trabalhar com outro modelo. Espero que, quando vier a desfilar, não me rasguem as roupas, como fez a marca italiana Avavav na semana da moda de Milão em 2023 e, muito menos o que fizeram no desfile de 2024, quando entregaram ao público baldes de lixo pelo que, quando o desfile começou, as modelos foram recebidas com restos de papel, cascas de banana, garrafas e latas quebradas, ovos e até alguns líquidos. Até a criadora da marca não escapou e levou com um bolo na cara enquanto estava a agradecer ao público. A marca deixou ainda todos perplexos ao mostrar modelos que corriam pela passarela como se estivessem a fugir de alguém e com roupas malvestidas e descosidas. Ora isso já eu faço muitas vezes. Mas o expoente máximo disso aconteceu em Paris, onde uma passagem de modelos fez furor ao mostrar os homens de túnica bem curta e sem cuecas, com o “instrumento” à mostra. Se a “moda pega” por cá …                   

Só cá para nós, andei a treinar aqueles passos largos de como quem vai com pressa para apanhar o comboio, de olhos focados lá à frente, braços e mãos relaxados, a balançar e estava quase a apanhar-lhe o jeito. 

Mas, ao saber que 86-60-86 deixou de ser a fórmula perfeita das supermodelos da Victoria’s Secret, a marca das asas de anjo por onde passaram Cindy Crawford, Kate Moss, Linda Evangelista, Carla Bruni, Claudia Schiffer e a portuguesa Sara Sampaio, desisti dessa ideia, em protesto por acabarem com o conceito das “boazonas” e dos corpos perfeitos. É que não é justo, pois os homens, e as mulheres também, perderam algo com que sonhar …

A verdadeira história do Bairro Social

Parado na esquina das instalações da extinta Fabinter, olhava o local onde outrora se erguiam vários mastros com bandeiras desfraldadas e se encontrava a pedra de granito que perpetuava o nome do Homem a quem se deveu a história de maior sucesso empresarial de Lousada, placa essa que levou sumiço poucos meses depois da sua morte em Junho de 85, como que a quererem apagar a sua memória. E depois olhei para o Bairro Social que uns políticos da treta (para não lhes chamar “políticos de m.”) viriam a batizar de “Bairro Dr. Abílio” – apesar do muito respeito que o Dr. Abílio merecia de todos os lousadenses, entre os quais eu me incluía, a verdade é que nada fez nem contribuiu para que aquele bairro ali nascesse – mas sem nenhum respeito pelo Homem a quem tal direito era devido: Hans Isler, um cidadão suíço que veio para Portugal, adotou Lousada como sua terra e que escolheria como sua “residência definitiva”.   

Há cinquenta anos a Fabinter era uma empresa de confeções sediada precisamente no outro lado dos terrenos onde anos mais tarde viria a ser construído o Bairro Social e que, com a ampliação das instalações, ganhou uma dinâmica de sucesso muito grande, assente na promoção e desenvolvimento da sua marca de referência: KISPO. Esta marca teve sucesso tão grande que rapidamente os clientes passaram a chamar “kispos” a tudo o que fosse anoraques, tendo a marca sobreposto o seu nome ao produto, com grande impacto em Portugal e na Europa, de tal forma que a palavra “kispo” passou a constar no Dicionário de Língua Portuguesa para referir “blusão de material impermeável, geralmente curto”. Depressa se impôs e dominou o mercado nacional, vindo-se a expandir na Europa a partir de uma empresa de distribuição que Hans Isler tinha na Suíça. Liderada por Hans Isler, a Fabinter era o motor de desenvolvimento do concelho de Lousada nessa altura, tornando-se ainda a fonte de conhecimento mais moderna do país ao nível do fabrico de confeções, tendo formado muitos dos futuros industriais do setor e onde foram colher informação todas as outras empresas do ramo a nível nacional.

Mas Hans Isler não criou só uma empresa de sucesso e uma escola que serviria todo o setor têxtil da confeção dos anos seguintes. Para além de tudo isso, revolucionou o mercado de trabalho ao recrutar para o seu quadro de pessoal centenas de mulheres e, por arrastamento, milhares de muitas outras nas empresas subcontratadas, mudando radicalmente a nossa maneira de vestir. Mas foi ainda mais longe ao assumir uma nova postura empresarial, somente iniciada de forma mais contida por José Dias na Estofex, com um nível salarial acima da média, condições adequadas ao bem-estar dos trabalhadores, regalias sociais e a assunção da responsabilidade social da empresa perante a comunidade que a servia. Foram uma imagem de marca de um homem vindo de um outro país com uma mentalidade muito acima da que aqui vingava. Numa fase conturbada depois do 25 de Abril e após ter posto na rua um seu colaborador que agarrou pelos colarinhos e que tentava criar convulsões revolucionárias internas, deixou uma frase marcante no seu discurso na homenagem que lhe fizemos para agradecer a oferta que fez de um instrumental novo para a banda de música da ACML. Recordo: “É fácil ser-se socialista. Difícil é ser-se empresário com princípios sociais”. E a esse nível das preocupações sociais, ele elevaria a fasquia ao pensar ainda mais nos trabalhadores quando adquiriu todos aqueles terrenos em frente à sua fábrica com a intenção de lhes retribuir ainda mais. Num tempo em que a maioria das pessoas não dispunha de habitações com condições mínimas de habitabilidade, dispôs-se a avançar com a construção de um Bairro para todos eles, precisamente naqueles terrenos, tendo para tal mandado elaborar um projeto a um arquiteto amigo, na Suíça, composto por um conjunto de blocos habitacionais e um bloco comunitário central para atividades sociais. O projeto daria entrada na Câmara Municipal de Lousada, mas, que se saiba, ficou a marcar passo indefinidamente sem nenhuma explicação plausível. No entretanto, dentro da empresa foi-se falando na forma de organização para o avanço com a construção, tendo sido sugerida a criação de uma Cooperativa de Habitação. Mas, a par disso, começaram a surgir na discussão outras questões imprevistas. Sendo a maioria das colaboradoras oriunda dos meios rurais, ligadas à terra e à produção de produtos hortícolas bem como à criação de animais de capoeira, coelhos e porcos para alimentação própria começaram a questionar como e onde poderiam criar esse animais e produzir as tais hortaliças e outros produtos agrícolas. Perante todas estas “areias na engrenagem”, Hans Isler ultrapassou o problema seria pondo ao dispor parte dos outros terrenos de que dispunha junto à fábrica tanto na mata como na vinha, onde se podiam dedicar a tais atividades.

Mas o projeto continuou a não ter resposta dos Serviços da Câmara Municipal e o tempo foi passando, cansando quem se propunha a tão grande empreitada, moendo as paciências, arrasando o entusiasmo do empresário. Até que um dia, numa conversa com o embaixador suíço em Portugal, seu amigo pessoal, Hans Isler contou-lhe tudo o que tinha feito para concretizar o empreendimento para os seus trabalhadores e da incapacidade de poder avançar, por inércia municipal. Na conversa, o embaixador aconselhou-o a não se chatear mais e que podia dar um contributo a Lousada e, eventualmente, a muitos dos trabalhadores da sua empresa, cedendo o terreno ao Fundo de Fomento da Habitação, criado havia pouco tempo, pois estavam à procura de terrenos para avançar com projetos e com a construção de habitações sociais. E que, conhecendo alguns dirigentes desse novo organismo, fácil seria fazer com que eles se interessassem pelo terreno e por construir um Bairro Social. Cansado de esperar pela concretização do seu sonho, Hans Isler acabaria por aceitar a sugestão do embaixador e cedeu o terreno ao FFH, com a condição de ali fazer nascer um Bairro Social, o que veio a acontecer. 

Felizmente o Benemérito Hans Isler, uma das figuras máximas de Lousada do século XX, não chegaria a viver tempo suficiente para conhecer tamanha ingratidão, sofrer tal afronta e a desfeita dos responsáveis políticos que, provavelmente, também quiseram apagar a sua memória, precisamente num local onde ela deveria ter sido perpetuada. Mas na verdade, apesar da injustiça ser desta dimensão, nunca nenhum responsável político teve a coragem de a reparar e de “dar o seu a seu dono” …

Um coração a pensar nos outros

Numa reunião de amigos, um deles que já está divorciado há uns quantos anos e cortou relações com o seu único filho, nora e neto, dizia-me que agora é absolutamente independente e não precisa de ninguém. Deixei-o estender a sua teoria e, quando parou de divagar, perguntei-lhe: “Zé, se não precisas de ninguém, é sinal de que foste tu que fizeste este nosso almoço, cultivaste os legumes, produziste o vinho e o pão, criaste e mataste a vitela que comeste, serviste à mesa e vais arrumar, limpar, lavar e tudo o mais”? Eu percebi ao que ele queria referir-se ao dizer que “não precisa de ninguém”, pois é um slogan que às vezes se atira só como desabafo e nada mais. 

Como disse D. Tolentino de Mendonça, cardeal, poeta e teólogo, “a nossa vida não depende apenas de nós e das nossas escolhas: todos estamos nas mãos uns dos outros”. Porque dependemos todos uns dos outros, não só para ser felizes, mas mesmo para sobreviver. A sociedade funciona assim e parece que não entendemos o que a história nos ensina: eu dependo dos outros, mesmo que não queira. E hoje, mais que nunca, é impossível alguém colocar-se na falsa posição de que não depende de ninguém. E nesta dependência dos outros em toda a nossa vida, desde o momento em que nascemos, “os outros” têm uma enorme importância ao longo dessa caminhada. E a questão central é percebermos e até que ponto queremos interagir, partilhar, ajudar, ir e estar com “os outros”.

No Michigan, nos Estados Unidos, o dono de uma livraria decidiu mudar de instalações. A nova loja ficava apenas a um quarteirão de distância. Mas, em vez de empacotar os livros em caixas e contratar camiões para fazer a mudança, a comunidade decidiu fazer algo diferente. Mais de trezentas pessoas formaram uma corrente humana e, de mão em mão, livro por livro, moveram toda a livraria e, o mais incrível, é que os livros chegaram à nova loja exatamente na mesma ordem em que estavam nas instalações antigas. Este caso fala sobre união, gentileza, sobre o poder duma comunidade que escolhe somar e não esperar. 

Na vida nós carregamos histórias, pesos invisíveis, que por vezes parecem pesados demais para carregar sozinhos. Mas, quando alguém estende a mão, tudo muda. Porque ajudar não é sobre fazer muito, é sobre estar ali a dizer “eu estou contigo”. Esta corrente não transportou apenas livros. Ela moveu corações, lembrou a todos que pertencemos uns aos outros, que juntos a travessia é mais leve. E que quando ajudamos alguém a carregar um peso, também ficamos mais fortes. Podemos não conseguir fazer uma grande mudança na vida, de alguém, mas será que não podemos ajudar a carregar um livro? Ou uma caixa? Ou talvez uma dor? E se começássemos a olhar mais para a comunidade, para quem vive ao nosso redor, ao nosso lado? 

O mundo não precise de heróis solitários, mas de mãos estendidas, de olhares atentos, de pessoas que escolhem fazer parte. E a magia em ajudar é que, quando levamos alívio a alguém, também nos curamos.

Tem 82 anos de idade, uma pequena reforma, vive à beira da estrada numa casa humilde numa aldeia de Lousada e toda a gente a trata, carinhosamente, por Teresinha. Tem oito filhos que são a sua maior riqueza e de quem muito se orgulha, tendo herdado da sua avó a sua maior qualidade: pensar e preocupar-se com “os outros”, mas muito especialmente com aqueles que “precisam”. Sim, porque ela durante a sua vida também “precisou”. Já com cinco filhos, seguiu o marido para Angola quando aquilo era um pedaço de Portugal, à procura de uma vida melhor. E conseguiram-na, não fosse a independência da ex-colónia que os fez regressar à terra, com um monte de dinheiro angolano, mas sem valor. E tiveram de recomeçar de novo, passar por dificuldades e precisar dos outros. Mas seguiu em frente e nunca se esqueceu de estender a mão para ajudar. Vejo-a de vez em quando a atravessar a estrada agarrada ao carrinho de mão a caminho do seu campo que cultiva, para si e para os “outros”, que são sempre a sua preocupação maior. Apesar de andar curvada, pelo peso da idade, da sua coluna que já não é o que era ou do excesso de entrega à sua missão, ela dedica os seus dias a trabalhar, para si, para ajudar quem precisa e até de quem não. Mas está na sua maneira de ser. A título de exemplo, quando semeia o cebolo, não fica pela pequena “margem” a pensar só nas suas necessidades, mas a pensar também nos outros. E fica triste quando já não tem mais para servir os que chegaram tarde. Semeia milho para a bicharada, hortaliças diversas que servem muita gente e até flores. Por isso, com regularidade lá vai ela com o carrinho de mão carregado de flores a caminho do cemitério, para “assear” as sepulturas, não só dos seus, mas umas quantas mais: uma porque é a campa de uma senhora que foi bondosa com ela e não tem cá família, outras porque estão ao abandono por uma ou outra razão e porque não consegue ficar indiferente ao ver uma sepultura esquecida. Por norma cuida de oito sepulturas, fora as outras …

Recentemente mandou vir de Montalegre um enorme saco de batatas que pesava uma tonelada. Teve trabalho de escolha e limpeza para vários dias, mas não se ralou com isso, pois o principal destino das batatas era a casa … dos outros. De uma tonelada, provavelmente não ficaram em sua casa mais de cinquenta quilos, pois foi levando a casa de A porque tem estado doente, a casa de B a quem a vida não está a correr bem, a casa de C porque lhe serve como semente e a casa de D só porque sim …  E não fica à espera que os conhecidos da aldeia lhe peçam para ajudar nos trabalhos agrícolas que implicam mais gente, pois ela aparece para trabalhar mesmo sem ser convidada, mesmo curvada, naquilo que é o verdadeiro espírito comunitário e que tão bem tem praticado ao longo de décadas …

Ela leva à letra e mais à prática, o mandamento bíblico de “amar o próximo como a si mesmo”. E é incrível essa sua força moral, o exemplo que nos dá, diariamente, e a alegria que ela encontra na alegria dos outros, ao partilhar muito do pouco que tem. E, por isso mesmo, tal entrega tem um valor tão grande, tão grande, que só pode ser possível devido ao tamanho do seu coração …

O Turismo é uma nova religião?

Quando era criança não se falava em turismo. A maioria das pessoas cá da terra nem sequer conhecia o Porto, quanto mais Espanha, que já era uma terra muito para além do sol-posto. E para aqueles, poucos, que conseguiram viajar para o Brasil, de barco, indo como imigrantes, até se fazia uma despedida como sendo para sempre. O Zé da tia Quina para lá foi e nunca mais o vi. Além disso, quase ninguém tinha férias. Os poucos “fidalgos” que tinham dinheiro para umas passeatas, iam até Coimbra, Fátima e, muito poucos, a Lisboa, fazendo questão de colarem nas malas de viagem, em cabedal, autocolantes das pensões por onde passavam, porque hotéis havia poucos, para exibir ao longo da viagem, à chegada … e provocar inveja. Como se fossem muito viajados …

Mas a vida foi mudando, a partir de certa fase de forma mais acelerada, fazendo com que (quase) toda a gente tenha férias e o turismo fosse massificado e se tornasse numa indústria poderosa. De tal forma, que o marketing e publicidade leva as pessoas a acreditar que fazer turismo lhes faz bem e as torna mais felizes. Viajar, admirar paisagens, museus, monumentos e obras de arte, é um substituto para um ritual religioso. Assim, o turismo pode ser visto como uma nova religião do mundo. A única coisa que têm em comum católicos, protestantes, muçulmanos, hindus, budistas e ateus, é a crença inabalável de ver a Torre Eiffel, o Parténon, a Capela Sistina, a Estátua da Liberdade ou outro qualquer monumento icónico. É um ritual que todos eles cumprem.

Há férias em “Peregrinação”, sejam excursões de autocarro, barco ou avião, para visitar cidades, museus, castelos e mais. São férias quase sempre móveis, a andar de um lado para o outro. E há férias que têm como destino um “Paraíso”, podendo ser em estâncias balneares, onde o indivíduo sonha por um regresso ao estado puro e à inocência. Dizem ser férias estáticas, alapados num local. Quase sempre, não passam de rituais que é necessário cumprir. Como em Punta Cana, na República Dominicana, para onde se viaja de avião e de autocarro do aeroporto a um hotel junto à praia onde se fica por uma semana ou duas no regime de “tudo incluído” e o mesmo é dizer “na engorda”, esparramado ao sol como os lagartos para ficar bronzeado, apanhar um escaldão e meter a carcaça na água do mar ou da piscina. E emborcar uns copos. No fim, a mesma viagem de autocarro e avião, mas ao inverso, para poder dizer “eu estive na República Dominicana”. Cumpriu-se o ritual, mas não se viu nada daquele país. Para bronzear-se, qualquer praia servia. Até cá. E um ano é em Punta Cana, depois nas Maldivas, Cancum, Seychelles, Varadero e por aí além, como em romagem pelas “capelinhas”, por onde passam habitualmente milhões de “fiéis” a cumprir o ritual. Há um denominador comum a quase todas: o regresso a casa. Tantas vezes a melhor parte …

Notícias do Paraíso: na brochura de férias no Havai, vê-se uma foto a     

cores de uma praia tropical: mar e céu de um azul brilhante, areia branca e só um par de figuras humanas deitadas à sombra de uma palmeira verde. É o passaporte para o Paraíso. Em todas as brochuras a mesmo foto, a mesma palavra: Paraíso. Mas ela nada tem a ver com a realidade. Mais de 7 milhões de pessoas visitaram o Havai em 2024. Alguém consegue encontrar lá uma praia tão deserta como a da foto da brochura? É o turismo a vender o mito do Paraíso. Um antropólogo diz que da simples repetição da palavra Paraíso resulta uma lavagem ao cérebro do turista, fazendo-o acreditar que foi aí que chegou, apesar da discrepância entre a realidade e a promessa. Por isso, lá encontramos a palavra Paraíso a repetir-se até à exaustão na Padaria Paraíso, Clínica Dentária Paraíso, Jet Ski Paraíso, Cruzeiros Paraíso, Bebidas Paraíso, Empréstimos Paraíso, Lavandaria Paraíso, Loja de Animais Paraíso, Fornecimentos Paraíso, Antiguidades Paraíso, Brinquedos Paraíso, Capela Paraíso, Desinfestações Paraíso, Móveis Usados Paraíso, Ouro Paraíso, Licor Paraíso, Massas Paraíso e tantas outras empresas com a tal marca Paraíso. No caso do Havai, o bairro de Waikiki em Honolulu é hoje um dos locais mais densamente povoados do mundo. Ali vivem, sempre, cerca de 100.000 almas em pouco menos de 400.000 metros quadrados. Um Paraíso, sem a praia deserta, “um lar sem inverno dos mortos felizes”! Uma velha habitante dizia: “deram cabo disto. Quase não se via um hotel com mais de 2 andares. Construíram uma muralha de grandes hotéis ao longo da costa, só com uma passagem estreita que até temos de nos encolher para passar e ir à praia. Waikiki era uma aldeia e agora é uma grande cidade. Montes de gente na praia, na rua, nos passeios. Muito lixo, crime. Até o clima piorou, demasiado quente”. E é mais uma vez esta “religião” a degradar o planeta como em tantos locais e monumentos do mundo: Os carreiros, na Região dos Lagos, transformaram-se em trincheiras. Os frescos da Capela Sistina sofrem danos pela respiração e calor dos visitantes. Cento e oitenta pessoas entravam a cada minuto na Catedral de Notre Dame, com os pés a desgastar o pavimento e com o fumo dos escapes dos autocarros a corroer os trabalhos em pedra. A poluição das viaturas em bicha para as estâncias de esqui, fazem morrer as árvores e causam avalanches. O mar Mediterrânio é como uma sanita gigante, mas sem corrente de autoclismo e uma em cada seis pessoas que nele se banha corre o risco de apanhar uma doença. Em 1987, tiveram de fechar Veneza porque estava cheia. E se em 1963 desceram o Rio Colorado só 46 pessoas ao longo do ano, hoje são mais de 13.000 … por dia.  

Os Paraísos de férias são, inevitavelmente, metamorfoseados, em locais de Peregrinação pela força da indústria turística. Panoramas triviais ou totalmente inócuos são “trabalhados” a fim de poder ser um itinerário ao longo dos quais os turistas podem ser transportados e servidos por lojas, restaurantes, shoppings, barcos fluviais, artistas, etc. Pegue-se numa ilha qualquer. Em nove em cada dez vezes faz-se uma estrada a contorná-la, formando um círculo, isto é, uma correia de transmissão destinada a transportar pessoas de uma armadilha de turistas até à seguinte, com um grupo a sair enquanto o outro chega. E o mesmo acontece com itinerários de cruzeiros, voos charter, etc. Cada operação na linha de montagem obedece a uma ficha que indica ao operador a altura precisa em que deve iniciar a operação seguinte. Eliminam-se os engarrafamentos, garante-se o acesso e assegura-se o “Paraíso” para toda gente …  

Pague agora e morra depois …

Por norma, hoje vive-se a crédito, às prestações, sem preocupações de maior porque se pode “morrer agora e pagar depois”, até porque, pagar na outra vida é, presumivelmente, mais fácil. E tudo é simples com o crédito facilitado porque os bancos e as casas de crédito vivem disso: emprestar dinheiro ou, melhor, vender dinheiro. Ora, o normal nos nossos dias é comprar quase tudo a crédito por conta do amanhã. No entanto há quem tenha descoberto um rico filão a vender e cobrar um serviço que só se recebe depois de morto: o “pague agora e morra depois”. Assim, já não é preciso estar às portas da morte para planear o fim de vida, querer escolher todos os pormenores das cerimónias fúnebres e deixá-los pagos, para que não seja uma preocupação nem encargos extras para os familiares.

Pois é verdade, há agências funerárias a vender o serviço de funeral ao próprio, o futuro morto, na modalidade de “pague agora e morra depois”. E se por cá ainda está a dar os primeiros passos, a verdade é que em alguns países como os Estados Unidos, a clientela já tem um peso muito significado no negócio, tanto por razões financeiras como emocionais no dizer das funerárias. Por um lado, compra-se o funeral ao preço de hoje, para um serviço que só será prestado no futuro, que pode ser mais ou menos distante, mas seguramente mais caro à data. Por outro, é o próprio “morto” quem define, negoceia e paga todos os pormenores do último evento social onde ele será a figura principal e onde deverão estar presentes os familiares, amigos mais próximos e até inimigos.

Com esta nova modalidade dá para escolher os detalhes, desde o tipo de madeira da urna (do pinho ao mogno), a sepultura, o jazigo ou a cremação, as flores, as pagelas, o livro de condolências, o carro e a música. Pode até incluir pedidos invulgares como passar o carro fúnebre num lugar onde foi feliz, seja a sua casa, o estádio do clube do seu coração ou da sua antiga escola. Tudo é uma questão do tamanho do rombo que se queira dar na conta bancária. Neste sistema de venda antecipada, o futuro morto deixa “tudo tratadinho” sem que fiquem assuntos delicados para quem cá fica, garantindo que as suas últimas vontades serão respeitadas. Há quem faça escolhas muito personalizadas como as flores – rosas vermelhas, o padre, a música – de Wagner, o fato, a camisa e até a gravata rosa.

As agências funerárias dispõem já de uma “ementa” vasta e variada para satisfazer os gostos de todo o tipo de “mortos” e já começaram a conquistar clientela. Dizia uma delas: “O meu funeral está pago e tive de preencher um papel com todas as minhas vontades. Quero que me vistam o vestido com mais brilhantes que eu tiver na altura, quero ser cremada e que coloquem as cinzas numa caixinha com muita purpurina. No trajeto até à igreja, vou de charrete com cavalos. Na cerimónia, não quero ninguém de preto”.

Por cá o negócio não tem avançado grande coisa porque, mais do que por uma questão cultural, terá a ver com o facto da Segurança Social comparticipar o funeral. E a maioria não quer perder o subsídio, nem mesmo depois de morto …                                                                                 Mas isto de “pague agora e morra depois” tem um grave problema que em Portugal ainda pode ser pior do que nos Estados Unidos: por lá, este negócio está-se transformando num pesadelo para muitas famílias americanas, que estão com “o coração nas mãos” ou melhor, com as mãos na carteira, ao verem o seu rico dinheirinho voar. Isso mesmo, pois lá como cá, também há “chico-espertos” e umas quantas agências funerárias não estão a honrar os compromissos assumidos com famílias de diversas regiões dos EUA. Um caso tem tido grande repercussão na imprensa, pois o novo proprietário de um “complexo” funerário de Memphis, anunciou que “nunca teve a intenção de cumprir os 13.500 funerais pagos antecipadamente”.

Ora, um golpe destes, já não deixa morrer tranquilamente todos os investidores antecipados em milhares de contratos funerários pré-pagos, que impunha à empresa encarregar-se de todos os detalhes de funerais, incluindo preparativos e decoração de velórios, igrejas, capelas e das residências dos contratantes. Mais do que uma afronta ao sentimento de centenas de milhares de norte-americanos, isto revelou a “ponta de um iceberg” que pode tornar-se num pesadelo para pessoas como um casal que já havia pago o seu funeral há 24 anos ao até então “respeitável complexo mortuário”. E, segundo um alto responsável americano no chamado “mercado da morte”, este caso está longe de ser um ato isolado. “Casos deste tipo estão a ser comuns, pois os diretores de várias funerárias desapareceram com o dinheiro pago antecipadamente”, lamentou. Ora, não havendo por lá um subsídio de funeral semelhante ao da nossa Segurança Social, os “mortos” com funeral pré-pago correm o risco de ficar à porta de casa à espera de quem nunca os virá buscar …

Cá para nós que ninguém nos ouve, a má experiência americana e as suas consequências devem ser um aviso à navegação nacional e aos potenciais interessados em “pagar agora e morrer depois”, mais ainda tendo em conta que se isto acontece lá onde a justiça costuma ter mão pesada, aqui isto pode ser um pouco pior pois, se acontecer mesmo, como todos sabemos, a nossa justiça ainda fará regressar cá os mortos para os obrigar a indemnizar as agências funerárias por não terem morrido antes delas falirem. E, para serem enterrados segunda vez, vai ser uma chatice, pois já não terão direito a um novo subsídio da Segurança Social …