A verdadeira história do Bairro Social

Parado na esquina das instalações da extinta Fabinter, olhava o local onde outrora se erguiam vários mastros com bandeiras desfraldadas e se encontrava a pedra de granito que perpetuava o nome do Homem a quem se deveu a história de maior sucesso empresarial de Lousada, placa essa que levou sumiço poucos meses depois da sua morte em Junho de 85, como que a quererem apagar a sua memória. E depois olhei para o Bairro Social que uns políticos da treta (para não lhes chamar “políticos de m.”) viriam a batizar de “Bairro Dr. Abílio” – apesar do muito respeito que o Dr. Abílio merecia de todos os lousadenses, entre os quais eu me incluía, a verdade é que nada fez nem contribuiu para que aquele bairro ali nascesse – mas sem nenhum respeito pelo Homem a quem tal direito era devido: Hans Isler, um cidadão suíço que veio para Portugal, adotou Lousada como sua terra e que escolheria como sua “residência definitiva”.   

Há cinquenta anos a Fabinter era uma empresa de confeções sediada precisamente no outro lado dos terrenos onde anos mais tarde viria a ser construído o Bairro Social e que, com a ampliação das instalações, ganhou uma dinâmica de sucesso muito grande, assente na promoção e desenvolvimento da sua marca de referência: KISPO. Esta marca teve sucesso tão grande que rapidamente os clientes passaram a chamar “kispos” a tudo o que fosse anoraques, tendo a marca sobreposto o seu nome ao produto, com grande impacto em Portugal e na Europa, de tal forma que a palavra “kispo” passou a constar no Dicionário de Língua Portuguesa para referir “blusão de material impermeável, geralmente curto”. Depressa se impôs e dominou o mercado nacional, vindo-se a expandir na Europa a partir de uma empresa de distribuição que Hans Isler tinha na Suíça. Liderada por Hans Isler, a Fabinter era o motor de desenvolvimento do concelho de Lousada nessa altura, tornando-se ainda a fonte de conhecimento mais moderna do país ao nível do fabrico de confeções, tendo formado muitos dos futuros industriais do setor e onde foram colher informação todas as outras empresas do ramo a nível nacional.

Mas Hans Isler não criou só uma empresa de sucesso e uma escola que serviria todo o setor têxtil da confeção dos anos seguintes. Para além de tudo isso, revolucionou o mercado de trabalho ao recrutar para o seu quadro de pessoal centenas de mulheres e, por arrastamento, milhares de muitas outras nas empresas subcontratadas, mudando radicalmente a nossa maneira de vestir. Mas foi ainda mais longe ao assumir uma nova postura empresarial, somente iniciada de forma mais contida por José Dias na Estofex, com um nível salarial acima da média, condições adequadas ao bem-estar dos trabalhadores, regalias sociais e a assunção da responsabilidade social da empresa perante a comunidade que a servia. Foram uma imagem de marca de um homem vindo de um outro país com uma mentalidade muito acima da que aqui vingava. Numa fase conturbada depois do 25 de Abril e após ter posto na rua um seu colaborador que agarrou pelos colarinhos e que tentava criar convulsões revolucionárias internas, deixou uma frase marcante no seu discurso na homenagem que lhe fizemos para agradecer a oferta que fez de um instrumental novo para a banda de música da ACML. Recordo: “É fácil ser-se socialista. Difícil é ser-se empresário com princípios sociais”. E a esse nível das preocupações sociais, ele elevaria a fasquia ao pensar ainda mais nos trabalhadores quando adquiriu todos aqueles terrenos em frente à sua fábrica com a intenção de lhes retribuir ainda mais. Num tempo em que a maioria das pessoas não dispunha de habitações com condições mínimas de habitabilidade, dispôs-se a avançar com a construção de um Bairro para todos eles, precisamente naqueles terrenos, tendo para tal mandado elaborar um projeto a um arquiteto amigo, na Suíça, composto por um conjunto de blocos habitacionais e um bloco comunitário central para atividades sociais. O projeto daria entrada na Câmara Municipal de Lousada, mas, que se saiba, ficou a marcar passo indefinidamente sem nenhuma explicação plausível. No entretanto, dentro da empresa foi-se falando na forma de organização para o avanço com a construção, tendo sido sugerida a criação de uma Cooperativa de Habitação. Mas, a par disso, começaram a surgir na discussão outras questões imprevistas. Sendo a maioria das colaboradoras oriunda dos meios rurais, ligadas à terra e à produção de produtos hortícolas bem como à criação de animais de capoeira, coelhos e porcos para alimentação própria começaram a questionar como e onde poderiam criar esse animais e produzir as tais hortaliças e outros produtos agrícolas. Perante todas estas “areias na engrenagem”, Hans Isler ultrapassou o problema seria pondo ao dispor parte dos outros terrenos de que dispunha junto à fábrica tanto na mata como na vinha, onde se podiam dedicar a tais atividades.

Mas o projeto continuou a não ter resposta dos Serviços da Câmara Municipal e o tempo foi passando, cansando quem se propunha a tão grande empreitada, moendo as paciências, arrasando o entusiasmo do empresário. Até que um dia, numa conversa com o embaixador suíço em Portugal, seu amigo pessoal, Hans Isler contou-lhe tudo o que tinha feito para concretizar o empreendimento para os seus trabalhadores e da incapacidade de poder avançar, por inércia municipal. Na conversa, o embaixador aconselhou-o a não se chatear mais e que podia dar um contributo a Lousada e, eventualmente, a muitos dos trabalhadores da sua empresa, cedendo o terreno ao Fundo de Fomento da Habitação, criado havia pouco tempo, pois estavam à procura de terrenos para avançar com projetos e com a construção de habitações sociais. E que, conhecendo alguns dirigentes desse novo organismo, fácil seria fazer com que eles se interessassem pelo terreno e por construir um Bairro Social. Cansado de esperar pela concretização do seu sonho, Hans Isler acabaria por aceitar a sugestão do embaixador e cedeu o terreno ao FFH, com a condição de ali fazer nascer um Bairro Social, o que veio a acontecer. 

Felizmente o Benemérito Hans Isler, uma das figuras máximas de Lousada do século XX, não chegaria a viver tempo suficiente para conhecer tamanha ingratidão, sofrer tal afronta e a desfeita dos responsáveis políticos que, provavelmente, também quiseram apagar a sua memória, precisamente num local onde ela deveria ter sido perpetuada. Mas na verdade, apesar da injustiça ser desta dimensão, nunca nenhum responsável político teve a coragem de a reparar e de “dar o seu a seu dono” …